Fogo na Amazônia: ’45 dias sem uma estrela no céu’

Vera Oliveira da Cruz vive na Comunidade Nova Aliança, dentro da Reserva Extrativista Rio Ouro Preto, localizada em Guajará-Mirim (RO). Uma vida até então tranquila, baseada na coleta da castanha, do açaí, do beneficiamento do coco babaçu e da agricultura familiar. O fogo faz parte do plantio. É através do manejo do fogo que muitas comunidades limpam suas roças antes de começarem a plantar.

Mas o fogo que se espalhou através de incêndios criminosos por inúmeros territórios no Brasil a partir de junho de 2024 trouxe impactos inimagináveis para povos e comunidades tradicionais. Destruição de locais sagrados, seca, roças queimadas, animais carbonizados, desequilíbrio dos territórios. Em Rondônia, uma medida emergencial do Governo do Estado sai pela culatra para algumas pequenas famílias agricultoras.

Com a rápida escalada dos incêndios criminosos, o governador Marcos Rocha (União Brasil) baixou um decreto proibindo o uso do fogo em todo o estado por 90 dias. O decreto teve início em 29 de agosto e duraria por 90 dias. O que o Governo não previu, neste caso, é que isso também seria responsável por inviabilizar a produção de mandioca, arroz e outros alimentos em alguns territórios.

E até mesmo o que seria algo bom para as comunidades, acaba trazendo mais um efeito colateral: a chegada da chuva em novembro. Com a terra molhada, não dá pra queimar e assim preparar a terra. “Quem se avexou e limpou antes, vai conseguir plantar. Quem não limpou, não planta. Na minha comunidade mesmo, acho que ninguém conseguiu plantar arroz. Nem vai plantar”, lamenta a extrativista.

O agro e o fogo em Rondônia

Um levantamento feito pela Agência Pública em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra que Porto Velho aparece próximo ao topo de pelo menos três rankings de violência, desde 2012: dentre eles, desmatamento e queimadas. E a coisa não é diferente quando ampliamos o olhar para o estado como um todo. Rondônia é o cenário de uma atuação forte do agronegócio.

Julho de 2024 foi o pior em focos de incêndio desde 2005. Apenas no primeiro mês do segundo semestre, foram 1618 focos registrados no estado. As queimadas aumentaram cerca de 183% nos primeiros sete meses de 2024, na comparação com o mesmo período de 2023. O Rio Madeira também atingiu níveis históricos em julho, chegando a 2,45m de altura numa época em que deveria atingir mais de 5. Em agosto o rio baixou a 2,07m.

Segundo dados da plataforma MapBiomas sobre o desmatamento acumulado em Rondônia, foram aproximadamente 8,3 milhões de hectares de vegetação nativa desmatados em todo o estado entre 1985 e 2023. É como se 54 cidades do tamanho de São Paulo desaparecessem do mapa em quatro décadas. Como se uma área maior do que a soma territorial de 26 das 27 capitais brasileiras houvesse sido destruída.

Nesse mesmo período, o fogo consumiu aproximados 9,5 milhões de hectares no estado. Destes, 7,8 milhões foram em áreas dominadas pelo agronegócio – cerca de 95,6% disso para pastagem. Se forem consideradas as áreas que queimaram mais de uma vez, o número chega a mais de 27 milhões de hectares.

*A primeira imagem mostra a área total queimada em Rondônia de 1985 até 2023. **A segunda mostra a área queimada em Rondônia considerando a presença de fazendas (CAR). ***A terceira mostra a área queimada em Rondônia considerando a presença de terras indígenas, quilombos e unidades de conservação.

Fonte: MapBiomas

‘Fogo nunca antes visto’

Em 37 anos de vida, Nucicleide da Paz nunca viu algo parecido com o que aconteceu no Quilombo Forte Príncipe da Beira, em Costa Marques (RO), entre agosto e setembro deste ano. Nascida e criada lá, ela assistiu, pela primeira vez, o seu território pegar fogo. Por cerca de um mês e meio, a comunidade queimou ininterruptamente.

Fogo na Amazônia: '45 dias sem uma estrela no céu'

 “Os pescadores profissionais não conseguiam ir para o rio, porque a fumaça não permitia enxergar nada. Até as crianças que costumavam sair para brincar no fim da tarde, deixaram de ir. Tinha que ficar trancado em casa, por conta da fumaça. Ficamos mais de um mês e meio sem ver uma estrela no céu”, afirma a quilombola.

Ela conta que o fogo começou nas redondezas do seu território por volta do dia 12 de agosto. As brigadas do Prevfogo, entretanto, só iniciaram o combate aos incêndios em meados de setembro, após intensa mobilização dos quilombolas. Ela acredita que o fogo alcançou aproximadamente 80% dos 19 mil hectares que formam a sua terra e de seu povo.

Apesar do trabalho importante que as brigadas do Ibama e PrevFogo realizam, a ausência de políticas públicas e de investimento ainda é uma realidade que, no fim das contas, favorece o agronegócio e prejudica os territórios de vida.

“O fogo chegou bem perto das casas, mas não queimou nenhuma. Não dava 10 metros de distância. Tentamos controlar, fazendo aceiros, mas passou pra cá. Não queimou só as roças, queimou a mata, de onde a gente tira o sustento – a castanha, as caças. Foi assustador. Num dia, eu acordei à noite ouvindo o vizinho pedindo socorro”, relata a quilombola.

Impacto na produção e na renda

A Reserva Rio Ouro Preto queimou por cerca de 20 dias. E a produção da castanha, importante fonte de renda para as comunidades extrativistas, caiu. Segundo Vera, a coleta costuma ir do início de novembro até o final de fevereiro. A essa altura, ela e sua família já haveriam coletado cerca de 40 latões de castanha. Este ano, ainda não chegaram nem a 5.

Cada latão desse armazena 12kg de castanha. Vera conta que quando o produto é adquirido pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), cada quilo sai em média por 15 ou 17 reais. Depende de quem compra: Governo Estadual ou Federal. Para os extrativistas, essa é a melhor forma de vender a castanha, mas não é a única e nem a mais frequente.

“Você sabe que coisa do governo demora. Quem trabalha, quer receber logo. Às vezes, você precisa comprar um remédio, um calçado, uma mistura. Aí você se sujeita a vender para o atravessador”, relata. Vera explica que o preço da castanha varia muito, se vendida para o atravessador. Atualmente, cada latão tem saído por, no máximo, 60 reais.

Fogo na Amazônia: '45 dias sem uma estrela no céu'

No Forte Príncipe da Beira, a tradição de usar o fogo para preparo das roças diminuiu. Dos incêndios, restou um trauma. “Precisamos limpar o terreno para ter plantação no próximo ano. Fazíamos isso com fogo, com cuidado, os aceiros. Hoje não estamos mexendo com fogo. Por medo. Quem tem condição, paga um trator. Quem não tem, vai pra enxada”.

Carpir uma roça inteira na ponta da enxada é um trabalho cansativo, afirma Lulu. Mas o custo médio do aluguel do trator na sua região gira em torno de R$ 480 reais por hora. Após ter a sua produção tão impactada, são poucos/as na comunidade inteira que têm condições de arcar com esse custo.

Agro é Gov

Larissa Rodrigues, da CPT-RO, explica que as violências no em Rondônia vão do garimpo ilegal à tentativa de privatização dos rios, mas tudo vem do mesmo lugar: o agro. “Rondônia só decretou calamidade quando os fazendeiros sentiram. As dragas no Madeira só beneficiam o agro. A sua privatização exclui as comunidades e traz a ameaça até mesmo de pedágio. Arranca o rio do seu lugar de território de direito que é”.

Ela conta que o Ramal do Macaco, uma das 11 comunidades que compõem a Resex Rio Ouro Preto, já está cercado por grandes fazendas. “O fogo é arma pra avançar sobre o território. E o Governo de Rondônia só facilita a entrada dos fazendeiros, flexibilizando legislações sobre uso do agrotóxico. As comunidades não têm acesso a irrigação, mas as fazendas de soja têm tecnologia avançada pra jogar veneno via drone”.

A presença do agro afeta todo o equilíbrio dos territórios. A extrativista Vera Oliveira conta que, por conta do desmatamento dos sojeiros, os animais selvagens se refugiam nas reservas. “Com a derrubada da floresta em outras áreas, os animais acabam se aproximando e comendo a nossa roça. Eles vêm pra cá, com razão. É onde continua preservado, onde ainda tem mata. Eles querem comer”, finaliza.

Apoio emergencial

Mediante esses incêndios, a CESE dialogou com a Articulação Agro é Fogo colocando à disposição um apoio emergencial para comunidades mais atingidas na Amazônia, Cerrado e Pantanal, contando com o acompanhamento de uma organização local parceira. Neste caso, a CPT Rondônia.

A proposta prevê apoio para compra de alimentos/cestas básicas, água potável, EPIs de combate aos incêndios, mudas e/ou outros itens. O apoio foi destinado à compra de alimentos, água potável e mudas de plantas para o reflorestamento de áreas degradadas – uma vez que as queimadas destroem as sementes.

A Resex Rio Ouro Preto e Quilombo Forte Príncipe da Beira foram gravemente afetadas pelos incêndios criminosos de 2024 e pela seca. “A seca prolongada atingiu o principal Rio da Resex, o Ouro Preto, e também o Rio Guaporé, principal do quilombo Forte Príncipe da Beira. Muitas famílias estavam tendo acesso precário a água. Perderam renda, com as castanheiras queimadas. Viram a fome crescer com a escassez das caças na mata e dos peixes nos rios secos”, explica a Secretária Executiva da Agro é Fogo, Jaqueline Vaz.

“O trabalho conjunto feito pela CESE, Agro é Fogo e CPT-RO pôde amenizar o sofrimento e pânico vivido por essas famílias”, finaliza.

Fogo na Amazônia: '45 dias sem uma estrela no céu'
Roda de conversa e vivências realizada pela CPT-RO na comunidade de Terra Firme, no Baixo Madeira, durante uma das ações de entrega dos itens de apoio emergencial