Por: Cláudio Márcio Rebouças da Silva
Jorge Luiz Nery de Santana
A igreja precisa parar de vez em quando para perguntar-se a si mesma: ‘onde estamos’, ‘para onde vamos?’.
As estruturas eclesiásticas não são sagradas. Podem mudar e de fato tem mudado ao longo da história (Waldo César)
Nossa reflexão ocorre a partir de uma perspectiva ecumênica, crítica, libertadora e esperançosa, uma vez que, o fenômeno religioso é demasiadamente complexo e cheio de (des)encantos. Cabe ressaltar que nós mesmos temos uma relação cheia de ambivalências com o cristianismo católico e ou protestante. Rubem Alves, falando sobre a religião, aponta que: “ela se presta a objetivos opostos, tudo dependendo daqueles que manipulam os símbolos sagrados. Ela pode ser usada para iluminar ou para cegar, para fazer voar ou paralisar, para dar coragem ou atemorizar, para libertar ou escravizar” (ALVES, 2003, p. 104).
Sabe-se que tanto na América Latina, quanto no continente Africano, cristianização e colonização se confundiram como faces de uma mesma moeda, assim sendo, a fé cristã foi atrelada a um projeto de poder, de controle de corpos, de um ethos civilizatório em que o outro (povos originários e africanos) foram subjugados e escravizados em nome de uma percepção de Deus (branco, homem, europeu-americano) com um tom de modernidade e desenvolvimento da nação.
Desta maneira, o uso da Bíblia e de uma interpretação causou muito sofrimento e derramamento de sangue de muita gente. Poderíamos aqui problematizar como o livro sagrado dos cristãos é uma ferramenta importante como mecanismo de controle, alienação e dominação, mas, sem dúvidas alguma, essas construções literárias são bastante conhecidas e propagadas ao longo dos anos, porém, queremos ir na contramão, ou seja, na resistência de outras realidades possíveis em que o uso da bíblia proporcionou tomada de consciência, empoderamento e transformação social. Rubem Alves sinaliza: “mas os mártires têm aparecido: Gandhi, Martin Luther King, Oscar Romero e muitos outros. Líderes religiosos são intimados, perseguidos, ameaçados, expulsos, presos… Ópio do povo? Pode ser, mas não aqui. Em meio a mártires e profetas, Deus é o protesto e o poder dos oprimidos” (ALVES, 2003, p. 111).
Com efeito, onde podemos encontrar na realidade brasileira expressões em que a fé, a compaixão e o serviço sejam luzeiros de esperança num mundo pandêmico? Torna-se significativo observar que na história outras pandemias foram vivenciadas por sujeitos sociais e, suas estratégias de recriações também. A Covid-19, em solo brasileiro, com numerosa população e território extenso, tem conhecido um “esquadrão da morte” invisível e inteiramente terrível. Nós, o país (também) do samba, da alegria e do futebol, não temos dançado, não temos nos alegrado e, nosso time, não tem jogado nos diversos campeonatos. Nós que temos como uma característica cultural o aperto de mão, o beijo e o abraço, precisamos redefinir essas ações (num contexto específico) como sinal de amor próprio e coletivo. Logo, “se vocês de fato obedecerem à lei do Reino encontrada na Escritura que diz: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’, estarão agindo corretamente” (Tiago 2:8).
Ora, se as estruturas eclesiásticas não são sagradas como apontou o sociólogo Waldo César, Leonardo Boff em sua obra Igreja: Carisma e Poder, nos adverte: “o que há de mais sagrado do que a pessoa humana? O sagrado da pessoa é mais importante que o sagrado dos objetos e espaços sagrados” (BOFF, 2010, p.63).
De fato, toda vida é sagrada e não apenas a de alguns e algumas, assim sendo, encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança num mundo pandêmico nas ações proféticas responsáveis, maduras e corajosas na vida de homens e mulheres que compõem instituições como: Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC); Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE); Movimento de Organização Comunitária (MOC) para citar apenas algumas.
Encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança em articulações de inúmeras comunidades eclesiásticas que conseguem recolher alimentos de higienização e limpeza, bem como alimentos e remédios para os mais vulneráveis sociais.
Encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança quando uma rede solidária protege familiares e vizinhos idosos com idas aos supermercados, às farmácias e aos bancos. Nessa proteção e amorosidade a face de Deus é revelada. Assim, podemos rememorar a narrativa bíblica ao assinalar: “nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos” (1 João 3:16).
Encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança quando um telefonema é feito não para cobrar ou reclamar, mas, para que alguém do outro lado não se sinta isolado, desesperado, isto é, uma ligação pode revelar a voz amorosa de Deus que cuida, empodera e faz sorrir.
Encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança quando uma voz misteriosa conduz a jornada de milhares de brasileiros e brasileiras ao dizer: “não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou teu Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a destra da minha justiça” (Isaías 41:10). Assinalo aqui que essa voz é cheia de polifonias e que não se limita aos sinos das catedrais, nem ao som dos pandeiros. É som de “pássaro encantado e não empalhado” como diria Rubem Alves.
Encontramos na realidade brasileira expressões de fé, compaixão e serviço como luzeiros de esperança quando, de repente, assumimos a responsabilidade profética de denúncia e anúncio. Nossa fé é ponte para outra realidade possível! Não são palavras ao vento, mas, verbo encarnado para o mutirão da libertação. Por uma práxis humanizadora que caibam todos e todas indistintamente.
Fazemos coro a canção utopia do Zé Vicente ao dizer:
Quando o dia da paz renascer
Quando o Sol da esperança brilhar
Eu vou cantar
Quando o povo nas ruas sorrir
E a roseira de novo florir
Eu vou cantar
Quando as cercas caírem no chão
Quando as mesas se encherem de pão
Eu vou cantar
Quando os muros que cercam os jardins, destruídos
Então os jasmins vão perfumar
Vai ser tão bonito se ouvir a canção
Cantada de novo
No olhar da gente a certeza de irmãos
Reinado do povo
Quando as armas da destruição
Destruídas em cada nação
Eu vou sonhar
E o decreto que encerra a opressão
Assinado só no coração
Vai triunfar
Quando a voz da verdade se ouvir
E a mentira não mais existir
Será enfim
Tempo novo de eterna justiça
Sem mais ódio sem sangue ou cobiça
Vai ser assim
Vai ser tão bonito se ouvir a canção
Cantada de novo
No olhar da gente a certeza de irmãos
Reinado do povo
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REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder. 2° ed. Rio de Janeiro. Record, 2010.
https://www.letras.mus.br/ze-vicente/903445/
Cláudio Márcio Rebouças da Silva é reverendo da Igreja Presbiteriana Unida (IPU) de Muritiba-BA.
Jorge Luiz Nery de Santana é pastor da Aliança de Batistas do Brasil (ABB) e professor na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Informações extraídas do CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs