Por uma ação pastoral contra a mercantilização da vida – Sônia Mota

Por: Sônia Mota [1]

Vivemos em tempos de mercados, consumismos, índices e estatísticas que querem nos fazer acreditar que o crescimento econômico de um país é o melhor sinal do seu progresso. Quando os índices de crescimento são bons e o consumo é alto, o mercado se anima. Mas se os índices forem negativos, o mercado entra em pânico. Esta é a lógica do sistema de mercado, a alma da economia capitalista.

Enquanto a economia de mercado apregoa o aumento do consumo para alcançarmos um grau cada vez maior de felicidade, o continente convive cotidianamente com a miséria. São cinco séculos de invasões de terras, extermínio e espoliação de populações tradicionais, violência contra mulheres, exploração de trabalhadores/as, abuso econômico e sexual de crianças, dizimação de jovens negros, destruição da natureza.

Para muitos, a lógica do mercado que explora recursos naturais como se fossem infinitos é algo natural e imutável. Lamentavelmente até discursos religiosos cristãos justificam este sistema, considerando-o uma “bênção”, já que traz “prosperidade”. Eles, no fundo, legitimam formas desiguais de viver no mundo.

Mas há as igrejas que não compactuam com o discurso da “prosperidade” e da felicidade através do consumo e estão preocupadas com a situação. Como atuar neste cenário? Ou, nas palavras do saudoso teólogo João Dias de Araújo:

Que estamos fazendo se somos cristãos/ãs?

Há muita gente sem lar, sem pão.

Há muitas vidas esperando a nossa ação.

Não só a alma do mal salvar também o corpo ressuscitar.

A partir da afirmação teológica de que todas as pessoas são criadas à imagem de Deus, com o direito e o potencial de viver vidas dignificadas em comunidades sustentáveis, os membros da Aliança ACT[2] estabelecem o princípio e o compromisso com um desenvolvimento transformador.

Desenvolvimento transformador tem a ver com atitudes e ações para que todas as pessoas tenham respeitados seus direitos humanos de procedência divina. Num mundo cada vez mais globalizado, as vidas mais e mais estão interligadas. Por isso, desenvolvimento transformador implica mudança para todas as pessoas envolvidas: aquelas com poder, riqueza e influência – que controlam e usam mais do que sua porção de recursos – e aquelas por demais prejudicadas por estruturas e sistemas opressores.

A profissão desta fé exige a rejeição daquelas condições, estruturas e sistemas que perpetuam a pobreza e a injustiça, o abuso dos direitos humanos e a destruição do meio ambiente.[3]

Esta compreensão de desenvolvimento transformador respalda as ações das organizações que compõem a Aliança e é um bom parâmetro também para as igrejas que querem refletir sobre suas ações pastorais e seu compromisso cm uma justiça social: caminhar ao lado dos empobrecidos deste continente que precisam de apoio, consolo, solidariedade e cumplicidade nas suas lutas. Ele motiva as igrejas a fazer uma análise crítica da realidade e encontrar novas opções de atuação pastoral que possam traduzir o amor ao próximo em ações concretas de superação de injustiça e desigualdade.

Uma atuação pastoral para preservação da vida está necessariamente atenta aos clamores do povo. E são muitos os gritos e desafios. Não é possível estar em todas as frentes de luta; é necessário escolher em quais queremos estar. Como igrejas, podemos fazer ecoar os clamores nas redes em que estamos inseridas, mas também há gritos que estão perto de nós e requerem a atuação fundamental das igrejas locais. Não há como abarcar todas as lutas do continente latino-americano; destaco apenas algumas. A leitora e o leitor podem ter outras.

 A questão ambiental

O conflito ambiental se dá quando uma comunidade é colocada em situação de injustiça ambiental e social. Hoje existe uma antecipação a possíveis conflitos ambientais entre as empresas e comunidades. É possível e necessário que as igrejas através das pastorais específicas e os movimentos sociais envolvidos tenham como estratégia construir intervenções metodológicas, educativas e de resistência para fortalecer as lutas antecipatórias.

Os movimentos sociais ambientais, rurais e urbanos, estão discutindo e buscando combater a cultura do agronegócio que ameaça a biodiversidade. A questão passa a ser não só a terra no sentido de reprodução, mas também de identidade; a perda do território significa a destruição dos solos, dos ecossistemas, da vida comunitária. É um embate contra a lógica do agronegócio, sustentada com os recursos naturais das comunidades tradicionais, que são espaços conservados.

O clamor do povo se expressa na voz de Alexandre Anderson [4]:

Progresso para quem? Apenas para as grandes indústrias. Não somos contra o progresso, somos contra a destruição do ecossistema pelas grandes indústrias enquanto a gente está colhendo somente o ônus.

Nossa ação pastoral está motivada em Gn 1,31:

E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom.

Sabemos o que fazer, individualmente, para preservar a boa criação de Deus e a continuidade da vida no planeta: ter consciência do consumo de água e alimentos, lidar responsavelmente com o lixo doméstico, aderir a campanhas contra a destruição de rios e florestas e boicotar produtos de empresas exploradoras. Além disso, as igrejas podem divulgar, em seus meios de comunicação, as ações de empresas que degradam o meio ambiente. Igrejas e indivíduos podem engajar-se em movimentos que buscam políticas públicas de proteção ambiental, de preservação das matas nativas e das sementes crioulas. Importante também é saber que a monocultura é um atentado contra a diversidade da boa criação de Deus.

Aprendemos com a Bíblia, os mártires e a doutrina social das igrejas que a propriedade tem “finalidade social”, pois a terra é dom de Deus para todas as pessoas e os frutos da terra não são propriedade de poucos.

A defesa dos povos e das culturas tradicionais

Hoje, muitos povos tradicionais da terra, das florestas e das águas – indígenas, quilombolas, ribeirinhos, coletores, pescadores tradicionais – têm seus territórios ameaçados pela aquicultura empresarial, o agronegócio, os grandes empreendimentos turísticos e os tóxicos que envenenam o ambiente. Poderosos empreiteiros privatizam as águas e, através de cercas, açambarcam territórios que pertencem a povos tradicionais, ameaçando até sua espiritualidade. O poder do dinheiro está destruindo a utopia da “terra sem males”, mas, da união dos povos da terra, das florestas, do rio e do mar está vindo a reação.

Este é o clamor desse povo:

Nossa principal luta hoje é para garantir o acesso à terra. O Congresso hoje está tentando tirar nosso direito com a PEC 215. Direito não é prá tirar, é prá ser cumprido. (Anastácio Peralta – Guarani Kaiowa / MS)

A nossa ação pastoral se apoia no texto de Isaías 10,1:

Ai daqueles que fazem leis injustas, que escrevem decretos opressores, para privar os pobres dos seus direitos e da justiça os oprimidos do meu povo, fazendo das viúvas sua presa e roubando dos órfãos.

O serviço profético da Igreja nos impele a colocar-nos ao lado dos indefesos e ameaçados pelo poder do capital. A ação pastoral buscará apoiar ações destes grupos no enfrentamento dos grandes projetos que cercam terras e águas, desmatam a floresta e destroem territórios, culturas, modos de vida e religiosidades. A nossa cidadania batismal nos constrange à solidariedade com estas populações que lutam de forma desigual para viver com dignidade e ter seu modo de viver respeitado. Como pastores/as somos convocados/as a devolver-lhes a esperança e a confiança para resistir e organizar as suas próprias saídas da crise.

A violência econômica contra as mulheres

A violência econômica é uma das muitas violências que atingem as mulheres. Segundo dados da ONU, 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo são mulheres. Em nosso continente, onde o trabalho de milhões é muito mal remunerado, as mulheres têm a carga mais pesada, pois recebem bem menos que os homens pelo mesmo trabalho. O trabalho das mulheres é explorado no campo e nas cidades, no emprego formal e no informal. Os trabalhos domésticos realizados por mulheres em sua casa, de forma não remunerada, não aparecem nas estatísticas e nos indicadores econômicos. Esta dupla ou tripla jornada, muitas vezes chamada de “Economia do Cuidado”, é geralmente invisibilizada, desvalorizada financeiramente e sujeita a violência física e a pressões psicológicas, sociais e culturais.

Muitas populações dependem de pequenas economias de subsistência que estão sendo ameaçadas por grandes empresas, o que tira seus meios de subsistência, afetando toda a família, em especial, as crianças.

Das mulheres vem o seguinte clamor:

As atingidas por barragem não são reconhecidas, justamente por não terem o título da terra. As empresas não as reconhecem como atingidas, nem o estado brasileiro. (Daiane Höhn dirigente do Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB)

Uma ação pastoral da igreja se assentará sobre a percepção de que a lógica do mercado é contrária à vida, pois viola direitos e cria desigualdades. Ela promoverá reflexões e ações que desmascarem o sistema patriarcal que se manifesta nos discursos sobre a submissão das mulheres, pretensamente legitimados pela religião. Por isso, além de poderem ser espaços de acolhida de mulheres vítimas de violência e de discussão aberta sobre a violência doméstica, as igrejas têm a tarefa de desconstruir os discursos que buscam subordinar a mulher ao homem e redescobrir, na própria Bíblia, textos que deslegitimam esta subordinação. O mito de que as mulheres são “naturalmente” dotadas para cuidarem de crianças, idosos e enfermos deve ser revisto. De suma importância, na atuação pastoral, é o apoio às lutas por políticas públicas que valorizem o trabalho doméstico e reconheçam o trabalho feminino em todos os âmbitos.

A intolerância religiosa e o diálogo inter-religioso

A intolerância religiosa tem muito mais a ver com economia do que imaginamos. Ela vem revestida de um contexto político, social e econômico e há vários interesses por trás do incentivo aos conflitos religiosos. A intolerância religiosa se dirige, na maioria das vezes, contra grupos social e economicamente vulneráveis e minorias religiosas ou raciais, revelando a face mais cruel do fundamentalismo: o preconceito. No contexto brasileiro, indígenas e negros são os que mais sofrem com a intolerância religiosa. Não é acaso que justamente estes grupos são os mais fragilizados social e economicamente. A mentalidade branca herdou algumas características dos conquistadores europeus e dos donos de terras e engenhos, entre elas a ideia de que a fé cristã é superior e, por isso, dá o direito de domínio sobre as pessoas que não a professam. Assim, os grupos que tradicionalmente detêm o poder político e econômico não correm o risco de perdê-lo.

Escutemos o clamor do povo:

Enquanto não entenderem que cada qual pode seguir sua religião, a intolerância só vai aumentar. Por que não respeitam a minha forma de acreditar em Deus? Será que Ele só tem um nome e um jeito de ser? Eu só quero viver em paz e cultuar meus orixás.  (Mãe Branca de Xangô- Ialorixá do Terreiro Ilê Asé Obá Seré – Salvador, BA).

A ação pastoral terá em mente Mateus 5,9: “Bem aventurados os que semeiam a paz, porque serão chamados filhos de Deus”.

“Não haverá paz no mundo se não houver paz entre as religiões”.[5] Poderíamos interpretar assim esta frase do teólogo Hans Küng: não haverá bem estar coletivo se não conseguirmos eliminar os preconceitos que dominam nossas ações. Portanto, a atuação pastoral que busca fortalecer o movimento ecumênico e o diálogo entre as religiões é fundamental para a desconstrução de preconceitos e a construção de uma sociedade que possibilite o bem estar de todas as minorias.

Continuando a reflexão

Nossas igrejas têm a tarefa de ser voz profética em defesa dos mais fracos em nosso continente. Mas, diante dos enormes desafios, talvez elas devam ir além de denúncias tópicas de injustiças para pensar na articulação de algo maior: um novo projeto de nação que possa construir uma sociedade justa e fraterna. Isso implica profunda revisão de nossa vida e nossas práticas, pois requer que se substitua a lógica do sistema de mercado, baseada na produção e no lucro, pela lógica do cuidado da vida para todos.

BIBLIOGRAFIA

A BÍBLIA SAGRADA. Edição Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida. Barueri: SBB

GEBARA, Ivone. A mobilidade da Senzala Feminina. Mulheres nordestinas, vida melhor e feminismo. São Paulo: Paulinas 2000.

SCHINELO, Edmilson. Conjuntura Brasileira: troquemos o PIB pelo FIB. In: Teologia da Libertação e Educação Popular. Raízes e Asas. São Leopoldo: CEBI, 2010.

BEDFORD, Nancy; STRIZZI, Marisa (Org.) El mundo palpita: economia, género y teología. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Iglesias/ Instituto Universitário ISEDET, 2006.

SOF- Sempreviva Organização Feminista. Trabalho, Corpo e Vida das mulheres. Uma leitura feminista sobre as dinâmicas do capital nos territórios.

GRUPO Desenvolvimento e Direitos. Desenvolvimento fundamentado em direitos: uma perspectiva fundada na fé. Posicionamento conjunto.

KÜNG, Hans. Não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões: um caminho ecumênico entre o fanatismo e o esquecimento das verdades. In: Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. Trad. Haroldo Reimer. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 121-166.

[1] Pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e Diretora Executiva da CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço www.cese.org.br

[2] Aliança ACT- ACT Alliance é uma coalizão de mais de 140 igrejas e organizações afiliadas que trabalham em conjunto em mais de 140 países para criar mudanças positivas e sustentáveis ​​nas vidas dos pobres e pessoas marginalizadas, independentemente da sua religião, política, sexo, orientação sexual, raça ou nacionalidade. Seus membros estão associados com o Conselho Mundial de Igrejas ou da Federação Luterana Mundial.

[3] O texto sobre Desenvolvimento Transformador foi elaborado pelo Fórum Ecumênico Brasil em 2008 e outros parceiros ecumênicos da América do Sul . O material produzido foi aprovado pelo Comitê Executivo da Aliança ACT em janeiro de 2013. O texto é um subsídio para estimular o debate sobre a mudança de paradigma de desenvolvimento.

[4] Alexandre Anderson, pescador da Baía de Guanabara, no filme Vento Forte, produzido pelo Conselho Pastoral dos Pescadores. Ameaçado de morte, faz parte do programa de proteção judicial.

[5] KÜNG, Hans. Não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões: um caminho ecumênico entre o fanatismo e o esquecimento das verdades.

Fonte: Ceseep

Imagem: Claudio Pastro – Lava Pés e Ceia Pascal