Muitos foram os retrocessos que os movimentos, povos e comunidades tradicionais e as camadas mais populares da sociedade brasileira sofreram desde o golpe de 2016. Em 2023, o Brasil se livra de um governo de extrema direita e isso abre uma janela de oportunidades para retomadas de direitos. Mas ninguém está disposta/o a reconstruir tudo do zero. Muito já foi construído e conquistado e não há tempo a perder.
Essa é uma das principais mensagens que ficam após o VIII Encontro CESE e Movimentos Sociais, que aconteceu nos dias 13 e 14 de março. A avaliação feita pelos grupos acerca dos últimos anos – principalmente dos quatro mais recentes – é de que muito do que foi conquistado nas últimas décadas foi destruído com facilidade e rapidez, e ninguém tem dúvidas dos porquês.
“A coisa se reverteu tão rápido porque era tudo muito frágil. Nada era estruturador. Agora nós precisamos dizer o que queremos: que esse governo deixe um legado mais consistente e estruturador”, afirmou Mônica Oliveira, da Coalizão Negra por Direitos. Cris Faustino, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, prega firmeza.
“A gente quer garantir direitos. Que parem a violência contra povos indígenas, populações negras e LGBTQIAPN+. Que as secretarias e ministérios que são importantes para nós tenham envergadura política e orçamentária. Queremos igualdade dentro da administração pública, e não algo isolado.”
Mércia Alves, da SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, fez também uma ressalva sobre a importância não aceitar o rebaixamento das pautas dos movimentos. “As lutas do campo e da cidade, das mulheres, do enfrentamento ao racismo não são só identitárias, por mais que sejam importantes para nós nos constituirmos enquanto sujeitas da luta. Não podemos rebaixar nossa pauta. Do contrário, vamos padecer dos mesmos males de 20 anos atrás. E eu não estou disposta a isso.”
Diante da mudança no cenário político, os debates perpassaram com frequência a necessidade de se fazer incidência política junto ao Governo Federal. Ainda que exista um sentimento de respiro por parte dos grupos, há, em maior proporção, o de cautela. Os movimentos consideram que cometeram um erro ao deixar de pressionar o governo por receio de fragiliza-lo, há 20 anos atrás. Um erro que não pode se repetir desta vez.
Mesmo com a derrota da extrema direita na disputa presidencial, é unânime o entendimento de que é preciso puxar o governo atual para a esquerda, pois ele já inicia o mandato cheio de amarras – ao agro, ao hidro e ao negócio da mineração. Todos esses são indicativos alarmantes de que o lobby do grande capital e do patriarcado terão espaço e poder para tentar impor suas pautas.
O racismo, o patriarcado e o capitalismo: o que é urgente nos próximos quatro anos
Muitos serão os desafios que enfrentaremos nos próximos quatro anos. Urge a necessidade de entendermos como devemos nos comunicar com as camadas populares que se afastaram da esquerda, de combater a desinformação. A crise climática avança, os mais afetados são os povos e comunidades tradicionais, as populações negras e periféricas, mas é a direita que tem conseguido colocar a sua “alternativa” para ela.
Mais do que nunca, o agronegócio, o hidronegócio e a mineração detêm ativos que os movimentos ainda não possuem, e isso fica explícito em falas como a de Jamilton Carreirinha, das comunidades de fundo e fecho de pasto do oeste da Bahia. “Eu devo estar na quinta ou sexta geração da minha comunidade que vive a luta contra o agro e o capital estrangeiro que tá sendo investido naquela região.” E complementa:
“Quem tem o comando e dá as cartas é o agronegócio. A cada dia que passa, a gente sente que tá perdendo território. Uma fazenda chega hoje dizendo que a terra é dela, amanhã é outra. Dizem que vão gerar emprego e renda. Qual o gestor que não quer isso?”, diz em tom de crítica ao Governo da Bahia, comandado há 16 anos por um partido que se coloca numa posição política de esquerda, mas que acumula um legado trágico em temas ambientas e de extrema violação de direitos de povos e comunidades tradicionais.
A atuação de setores fundamentalistas religiosos com o tamanho que vemos hoje, segue extremamente ameaçadora. O projeto político da direita é teocrático, contrário ao estado laico, nas palavras de Makota Celinha, do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB).
“Em 2016 sofremos um golpe alicerçado pela igreja. O neopentecostalismo e a direita têm um projeto de estado teocrático. Qual o papel da esquerda no processo? Nós precisamos trabalhar o ódio, a intolerância e o racismo na nossa sociedade. Se não aprendermos com nossos erros, podemos incorrer em falhas históricas.”
Além de tudo, não podemos perder de vista as estruturas que balizam todas as desigualdades do sistema capitalista: o racismo, o machismo e a desigualdade. Ainda de acordo com a fala de Mércia Alves, é preciso se atentar para o tipo de sociedade que queremos. ´
“A hegemonia é um projeto de político de sociedade, e nós precisamos pensar qual é a nossa. Quando identificamos o capitalismo enquanto nosso antagonista, não podemos entender que ele é algo abstrato. Ele é um sistema de dominação estruturado por opressões de raça, classe e gênero”, aponta. Neste sentido, Cris Faustino reforça a existência dessas tensões e como elas precisam ser vistas de frente e aprofundadas em nossa atuação.
“A racial, indicando que os brancos precisam se perceber – e ser incomodados – neste debate. De gênero – as pessoas consideram menos importante que o outro tenha conforto com a própria existência, mas se não há isso, muitos vão embora do território. Da educação popular, pois a gente tem riqueza. Precisamos fazer acervos e aprender a conversar com o nosso povo. E a geracional. A juventude não quer só repetir o que nós fizemos. Ela tem demandas próprias e quer ser reconhecida como sujeito político.”
Mônica Oliveira complementa dizendo que é impossível separar a luta de classes dessas tensões enquanto sistemas de opressão. “O racismo não é uma doença, assim como o patriarcado. São sistemas de opressão. Alguém acha que o capitalismo estaria mantido até hoje se não fosse o trabalho das mulheres? O patriarcado sustenta o capitalismo. O racismo definiu a forma de estabelecimento do capitalismo no mundo”, conclui.
Os próximos quatro anos serão pautados por muitas disputas, e em grande medida as de narrativas. É preciso pautar reformas que foram negligenciadas pelos governos anteriores – agrária, urbana, política. Cobrar políticas públicas para a classe trabalhadora, a demarcação dos territórios tradicionais e originários. Reconstruir as políticas de juventude.
É preciso lutar por moradia digna no Brasil, não permitir que ela se resuma à construção de casas precárias e afastadas dos serviços públicos, dos empregos. É preciso garantir o acesso à educação, aos postos de saúde, saneamento, transporte de qualidade. Retomar os conselhos é importante, mas não é uma novidade. O acúmulo construído até aqui nos possibilita retomar processos de pontos mais avançados, conquistados a partir da luta histórica dos movimentos.
Ninguém vai morrer de sede na beira dos rios ou de fome no seio das florestas, dos campos e das cidades. Ninguém vai morrer vítima do racismo, do feminicídio, da violência doméstica, policial ou do agronegócio, dos pistoleiros ladrões de terra, dos políticos mandantes dessas atrocidades ou do fundamentalismo religioso que alimenta o ódio. Viva a luta dos movimentos!
Encontro histórico: 50 anos ao lado dos movimentos
Realizado pela última vez em 2019, o encontro com movimentos é uma das principais estratégias da CESE para se manter alinhada à luta dos movimentos populares. Desde 2005, a organização reúne em Salvador várias lideranças de diferentes movimentos do Brasil para ouvir suas reflexões sobre a conjuntura política do momento e recomendações diante dela.
A oitava edição do encontro abriu oficialmente a programação comemorativa da CESE em 2023 pois, no dia 13 de junho, a organização completa 50 anos de existência e de luta ao lado dos movimentos. A sua programação incluiu ainda um resgate da trajetória da organização feito por Dimas Galvão, coordenador de Projetos e Formação, fazendo um recorte desde a sua fundação em 1973 e situando-a em momentos importantes da linha histórica brasileira e dos movimentos. A noite do primeiro dia também contou com uma apresentação cultural da juventude do Quilombo Aldeia Tubarão.
Encerrando o encontro, a Diretora Executiva da CESE, Sônia Mota, destacou que o diálogo com os movimentos é o que realmente alimenta a caminhada da organização. “A gente combinou de rever nosso Plano Político-Institucional somente após ouvir o que vocês tinham a dizer. Nós somos porque vocês são e nos fortalecem. Nós apoiamos seus projetos na certeza de que vocês farão o enfrentamento. E também reconhecemos o lugar da CESE no sentido de pautar essas questões dentro das igrejas. Obrigado por seu apoio!”
A análise feita pelos movimentos acerca da conjuntura brasileira e estratégias apontadas durante o VIII Encontro CESE e Movimentos Sociais balizaram as discussões do dia 15 de março, quando foi realizado o encontro com as agências internacionais parceiras e o Processo de Articulação e Diálogo (PAD), que também contou com participação de lideranças dos movimentos.
O consultor Domingos Armani trouxe contribuições a partir do encontro com movimentos no sentido de debater caminhos para o apoio das agências de cooperação. Mara Luz, consultora que realizou o estudo “Cooperação Internacional para o desenvolvimento e Organizações da Sociedade Civil da Alemanha, França, Holanda, Noruega, Reino Unido e Suíça”, apresentou os artigos na Roda de Diálogo.