“Bem aventurados e aventuradas aqueles e aquelas que têm fome e sede de justiça, porque elas e eles terão fartura”. O versículo do Evangelho de Mateus representa para muitos cristãos e cristãs a necessidade de lutar por direitos e a importância de defender um projeto de cidadania. É com esse trecho da Bíblia que Vanessa Barboza também sintetiza a missão da Rede de Mulheres Negras Evangélicas (RMNE), organização da qual faz parte. “A gente escolheu esse versículo porque ele expressa nosso desejo de justiça social para todas as pessoas”, explica Vanessa, que compõe a Coordenação Executiva da Rede.
Inspiradas por esse ideal, a Rede finalizou neste ano o projeto Cidadã de Fé. A iniciativa recebeu apoio da CESE através do Programa de Pequenos Projetos. Em sua segunda edição, a ação partiu da análise do papel central que as mulheres negras evangélicas passaram a ter no cenário político brasileiro. “Ao olhar para os anos recentes da democracia brasileira, pensar a participação política das pessoas evangélicas tem ganhando uma repercussão e uma relevância muito grande na sociedade”, explica Vanessa. “Pensar as mulheres negras nesse contexto é fazer uma provocação, na verdade. Uma provocação de como, a partir da fé, nós estamos pensando nossa cidadania e tendo atitudes, questões éticas, relacionadas também aos direitos sociais e aos direitos de todas as pessoas”, completa.
Formação crítica na luta por direitos
Segundo pesquisa do Datafolha de 2019, as mulheres negras são maioria dentro das igrejas evangélicas – elas compõem 58% do número de pessoas evangélicas do país, dentre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como pretas. No entanto, a ampla expressão numérica não acompanha a representação em espaços de poder, seja dentro ou fora dos núcleos religiosos. Para equilibrar essa equação, o projeto Cidadã de Fé aposta na formação política como uma chave fundamental. “A gente pensou em como sensibilizar e chamar a atenção dessas mulheres pra uma pauta democrática de fato, pra uma pauta preocupada com os direitos humanos, com a diversidade e com o Estado democrático de Direito”, destaca Vanessa Barboza.
A iniciativa, apoiada pela CESE, contou com lives no canal da Rede no Youtube em que foram debatidos temas relacionados à democracia brasileira, voto feminino evangélico e educação cidadã, todos eles com um recorte voltado à questão racial. Além de contribuir com a formação das participantes, os debates buscam também quebrar estereótipos sobre a imagem da mulher evangélica no Brasil. Vanessa destaca que “as lives podem ser revisitadas e servir como um conteúdo que desperta a reflexão das mulheres e desconstrói qualquer paradigma de que as mulheres evangélicas são fundamentalistas, reacionárias. Então elas têm essa intenção da gente se mostrar no audiovisual como protagonistas de um discurso de promoção de direitos humanos e justiça social”.
As lives foram realizadas com participantes do curso de formação “Em direito da mulher com ênfase no enfrentamento à violência contra as mulheres”, promovido em parceria com a Rede Cristã de Advocacia Popular (RECAP) e também com apoio da CESE. Para essa atividade, incluída no projeto Cidadã de Fé, foram realizadas quatro aulas em que se debateram ações e vivências de combate às violências de gênero na comunidade cristã. O interesse das mulheres em participar foi imediato. A coordenadora da Rede conta que, após dois dias de inscrições abertas, mais de 300 pessoas já tinham se inscrito no curso. O desejo pelo debate se materializou numa formação muito rica e que abriu muitos horizontes de investigação. “Esse processo foi interessante sobretudo pra ajudar a gente a localizar onde estão os pontos de dificuldade ao falar dos direitos das mulheres, especificamente da violência contra as mulheres, e o que a gente pode fazer sobre isso”, conta Vanessa.
Novos olhares sobre as mulheres cristãs
Além das atividades de formação, o projeto também lançou um formulário virtual para entender o perfil das mulheres evangélicas no que diz respeito ao seu acesso à informação sobre direitos e sua visão sobre fé e política. A pesquisa teve participação de 80 mulheres que participaram do curso de formação e, embora a Rede ainda esteja na fase de análise dos dados, Vanessa já destaca algumas informações importantes. Entre as participantes da pesquisa, muitas não consideram ser necessário que evangélicos tenham representantes políticos que também sejam evangélicos e a maioria disse que não vota conforme a orientação do pastor ou de outra liderança da igreja, por exemplo.
Em relação à pesquisa realizada na primeira edição do projeto, Vanessa Barboza ressalta que um dos elementos novos que surgiram foi o entendimento da representatividade política como expressão da garantia de cidadania das mulheres. A coordenadora avalia que esse novo olhar expressa uma atuação dos movimentos sociais sobre esse público. “Acredito que isso vem de um processo que a gente tem vivido também dos movimentos de mulheres negras, de estarem reivindicando de alguma maneira alcançar essa consciência também das mulheres evangélicas de que é importante que mulheres negras tenham também representação no poder Executivo e Legislativo”, aponta.
Até o fim de maio, a Rede pretende concluir a análise da pesquisa e lançar um relatório com os resultados. Como um dos desafios permanentes, Vanessa ressalta a necessidade de aprofundar as metodologias e linguagens para dialogar com as mulheres evangélicas. “O que a gente percebe hoje é que não é só encontrar fontes bíblicas que respaldem a questão da cidadania e dos direitos humanos das mulheres. É a linguagem e também os símbolos que precisam ser incorporados e que a gente precisa aprender a dialogar pra alcançar essas pessoas”. Para enfrentar essa e outras questões, Vanessa reconhece a importância do apoio da CESE aos projetos da Rede. “Desde a criação da Rede a CESE tem sido nossa parceira, incentivando nossa organização social como mulheres de fé, mas também como cidadãs”, finaliza Vanessa.