Nos últimos anos, o Brasil tem passado por inúmeros momentos de instabilidade política, econômica e social. A fusão entre setores conservadores políticos e religiosos não dá sinais de recuo e os avanços autoritários seguem gradativos e cada vez menos tímidos. A primeira manhã do Seminário Internacional “Tragédia Brasileira: Risco para a Casa Comum?”, nesta terça-feira (4), foi um grande palco para análise desse cenário.
Seis convidadas/os, dois internacionais, protagonizaram um profundo debate sobre as movimentações – principalmente políticas – que nos trouxeram ao momento que vivemos hoje: de intensificação das desigualdades sociais enraizadas no país. Ao todo, foram três mesas: a de abertura; “Templo e Democracia: os Riscos para a Casa Comum”; e “Templo e Mercado: a ameaça dos fundamentalismos confluentes”.
Olivier de Schutter, Relator Especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos desde maio de 2020, falou aos espectadores na primeira mesa. Ele trouxe críticas à Proposta de Emenda Constitucional que congelou gastos em áreas como educação e saúde pública por 20 anos. “Foi uma resposta desproporcional a uma crise imediata. Vemos agora como os hospitais estão mal equipados, quantas lacunas existem durante a pandemia”.
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Olivier critica a medida por que, além de gerar aumento de desemprego e da desigualdade, existiam outras respostas à crise. “Por exemplo, o imposto rural no Brasil é muito pequeno, enquanto o subsídio é muito grande – sendo que apenas 9% das fazendas brasileiras capturam 70% de todo o valor de subsídio do governo. Ao invés de congelar os gastos, poderia ter aumentado imposto sobre grandes fortunas ou terras aráveis”.
Ele pontua que, em 2016, a evasão fiscal no Brasil custava ao governo brasileiro 80 bilhões de dólares por ano. “Não existia uma crise de gastos, mas sim de renda. A decisão tomada fez com que a população pobre pagasse ainda mais pelas medidas de austeridade do governo”, finaliza.
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A segunda mesa contou com a participação da jornalista e professora Dra. Rosane Borges e do reverendo Dr. Olav Fykse Tveit, presidente da Conferência Episcopal da Igreja da Noruega. Rosane, desde o início, alertou que a sua fala poderia parecer negativa. “Mas parafraseando Antonio Gramsci: ‘é preciso ser pessimista na análise e otimista na ação’. Nosso cenário não é bom, mas precisamos colher possibilidades de construção de parâmetros civilizatórios a partir dele”.
Rosane faz críticas ao liberalismo que vigora no Brasil, buscando uma explicação no tempo da escravidão. “O nosso liberalismo surge com os senhores de escravo. Ser liberal e escravagista no Brasil não era nenhum escândalo. É preciso pensar que liberalismo é esse que conviveu e legitimou o que a princípio seria um contrasenso. Hoje, o liberalismo diz respeito apenas ao campo econômico, responsável por soterrar os ideais de liberdade, autonomia individual, tolerância, diversidade e pluralidade”
Ela relembra falas do ministro Paulo Guedes que denotam essa mentalidade que tem raiz escravagista e colonial. “Ele já reclamou da ‘farra das empregadas domésticas na Disney’ e acusou o aumento da expectativa de vida do brasileiro de ser responsável pelo colapso do sistema de saúde, ao invés da Covid-19. Você só questiona direitos se você parte do princípio de algumas pessoas não são humanas. Essa matriz da escravidão, que nos formou, ela diz que existem pessoas para as quais o direito não deve existir”.
Rosane suscita um cenário de protagonismo de pessoas não-brancas. “Quando a gente fala disso, a gente fala de uma visão de mundo dos que estão na borda e conseguem ver as coisas ruindo. No limite do jogo democrático, até nós mesmos da esquerda, as pensamos como destinatárias de políticas públicas A ideia é buscar fazer dessas sujeitas novas atrizes da dinâmica política”.
O reverendo Olav trouxe reflexões acerca da atuação das igrejas diante dos cenários antidemocráticos que rastejam para se instalar no Brasil e no mundo. Ele relembra de provocações que ouviu em um encontro com a Organização Mundial da Saúde, enquanto ainda era Secretário-Geral do Conselho Mundial de Igrejas. “Qual o papel da igreja em momentos assim? Eles enfatizavam que a igreja deveria ser a voz da verdade. A verdade científica e o que deve ser feito”.
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“É preciso evitar que a religião seja utilizada para conspiração, manipulação. Quais são as forças políticas que tiram vantagem de crises assim? Para aumentar o poder, a dominação, a divisão e a marginalização de certas populações?”, reflete. Ele também cita o alcance das igrejas como estratégico, mencionado no mesmo encontro por integrantes da OMS.
“As igrejas alcançam as pessoas, servem as comunidades locais, agindo na solidão e isolamento. Muitos as ouvem mais do que a líderes políticos. Devemos agir em situações de crise, em nome do amor de Deus. Fazer algo, mas também dizer o que não fazer”, finaliza o reverendo.
A segunda mesa contou com a fala da jornalista e pesquisadora Dra. Magali Cunha, do professor Dr. Fábio Py e do Ms. Edgar Sanchez, diplomado em Economia. Magali falou sobre a origem dos fundamentalismos, seus caminhos e estratégias de grupos fundamentalistas no Brasil dos dias atuais. Apesar de plurais, como ela costuma sempre destacar, Magali aponta que eles características em comum.
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“Os fundamentalismos estão presentes entre católicos, evangélicos, mas também entre os não-religiosos. A matriz religiosa está em sua visão de mundo. Por isso eles não são apenas religiosos, mas sim religiosos-políticos com dimensão social, econômica, cultural, ambiental”, explica.
Um dos aspectos que Magali costuma sempre reforçar é a utilização de fake news e disseminação de pânico moral como estratégia de grupos fundamentalistas. “Isso tudo vai atingindo e cativando emocionalmente as pessoas”. E repete um apelo que costuma fazer às forças progressistas. “É preciso voltar a trabalhar com formação critica dessas bases, mas com processos de comunicação à pastoral com a bíblica, com a linguagem religiosa mística que mexe com os corações das pessoas”.
Fábio, por sua vez, cita movimentos de grupos religiosos fundamentalistas hegemônicos para manutenção de poder, todos fazendo um aceno a Jair Bolsonaro, à época, ainda candidato. Dentre tantos, ele destaca o discurso do ex-senador Magno Malta, aliado de Bolsonaro durante as eleições, no momento em que se anuncia a eleição do atual presidente.
“É costume, nesses momentos, o vencedor sair às ruas para que haja uma festa. No momento em que se anuncia a vitória de Bolsonaro, ele se reúne com Magno e um grupo de pessoas, e o ex-senador faz uma oração, agradecendo a Deus pelo fato”. Fábio destaca a utilização de termos específicos das igrejas pentecostais. “Ele diz que ‘Deus deu a vitória’, ‘Sua palavra unge de autoridade’, ‘eleito concreto por Deus’”.
E cita outros exemplos. “Quando Bolsonaro foi vítima daquela facada, o pastor Josué Valandro Jr, pastor de Michele Bolsonaro, fala para Eduardo Bolsonaro em uma live que visitou seu pai no hospital e ‘percebeu o quanto ele é eleito por Deus”. Ele pontua que Jair Bolsonaro tem por traz dele um misto de tradições cristãs preocupadas em munir teologicamente a sua gestão.
Por fim, Edgar Sanchez, afirma que não é novo que interesses econômicos organizados utilizem a política para se apropriar da significação política e determinar o possível e o desejável. “O que tampouco é novo, porém é massivo, é a utilização do templo como um espaço de identificação congregacional e como um espaço relevante de criação de sentido. Não se trata de um templo físico. Há uma relação de tríade entre meios de comunicação, mercado e política. É um espaço que permite a reprodução ou reforço de relatos significantes, e daí se derivam as narrativas dogmáticas em matéria de direitos”.
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As três mesas foram mediadas respectivamente pela Secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs-CONIC, Romi Márcia Bencke; pela bispa da Diocese da Amazônia da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Marinez Bassoto; e por Sônia Gomes Mota, Diretora Executiva da Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE.
O Seminário Internacional Tragédia Brasileira segue com sua programação até esta quinta-feira, 6 de maio. Nesta quarta-feira (5), participam do encontro, à partir das 10:00, Benilda Brito, Consultora da ONU e do Nzinga-Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte; Ailton Krenak, : líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro; Monsenhor Bruno-Marie Duffé e Christine Jeangey, Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral.
Na segunda mesa do dia, entram em cena Luiz Marques, cientista social autor do livro “Capitalismo e colapso ambiental”; Nara Baré, a primeira mulher a assumir a liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab); e Josianne Gauthier, advogada canadense com mais de 20 anos de experiência em desenvolvimento internacional e solidariedade.