Feminicídio. Desde 2015, é considerado crime no Brasil; ao longo da história, é uma das manifestações mais perversas do patriarcado na sociedade. De acordo com Eleonora Menicucci, socióloga e ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, feminicídio é um crime de ódio cujo conceito surge na década de 1970 para reconhecer e visibilizar a morte violenta de mulheres resultante de discriminação, desigualdade, opressão e violência sistemáticas. Segundo levantamento do G1 com base nos dados oficiais dos estados e Distrito Federal, a cada 6 horas, em média, uma mulher foi morta no Brasil em 2022 apenas por ser mulher. Foram 1,4 mil mulheres que tiveram suas vidas ceifadas – o maior número registrado no país desde que a lei de feminicídio entrou em vigor.
Se os dados oficiais assustam, os crimes que sequer entram nas estatísticas evidenciam ainda mais a gravidade da situação. Foi na busca por investigar a fundo essas informações e fortalecer a luta feminista contra a violência que o Fórum Cearense de Mulheres (FCM), organização que compõe a Associação de Mulheres Brasileiras (AMB), lançou em março deste ano o “Dossiê FCM/AMB 2023: Contra-dados sobre Feminicídios no Ceará”. O projeto, que contou com o apoio da CESE, aponta estatísticas sobre homicídios contra meninas e mulheres no Ceará em 2019 e 2020 e confronta os dados divulgados pelo governo, revelando a subnotificação do feminicídio no estado.
Rose Marques, advogada e militante do Fórum Cearense de Mulheres/AMB, destaca que produzir o dossiê foi uma tarefa necessária para dar mais legitimidade às reivindicações do movimento feminista, que é constantemente deslegitimado. “Percebemos que produzir dados era condição necessária para continuar nossa incidência crítica em relação às políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres e ao feminicídio. Essa estratégia tem servido também para sermos ouvidas e reconhecidas como um movimento crítico e propositivo, com conhecimento confiável e com condições de pressão para mudança de rumos das políticas públicas”, explica.
Desafios na produção dos dados
O processo de pesquisa e sistematização das informações foi bastante complexo, como explica Rose. “Adotamos como caminhos metodológicos a organização dos dados em planilha, com análise individual dos casos a partir das notícias de jornais e outros veículos. Em cada caso, buscamos perceber quais componentes de gênero estavam presentes, olhando para a situação de cada crime e também para a forma como aquele dado foi tratado pelos órgãos de segurança”. A pesquisa também esbarrou em outras dificuldades, como a ausência de dados do governo do Ceará sobre o recorte racial das vítimas de feminicídio. Para Rose, essa postura reforça o racismo do Poder Público.
“Enquanto as pesquisas mais abrangentes, como a do Fórum Nacional de Segurança Pública, apontam para aumento dos homicídios de mulheres negras, no Ceará sequer contamos com dados essenciais. Negar ou dificultar a produção desses dados é um projeto diretamente implicado do patriarcado racista, que atinge de forma mais perversa as mulheres e meninas negras”, denuncia a advogada.
Pressão nos órgãos públicos
Mesmo antes do lançamento do Dossiê, o FCM já vinha realizando iniciativas para ampliar o diálogo com a sociedade e confrontar o Poder Público em relação aos dados encontrados. Em novembro de 2022, no bojo das ações do mês de luta contra a violência contra a mulher, foi realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Ceará em parceria com a Comissão de Direitos Humanos da Casa e com o mandato do Dep. Estadual Renato Roseno, presidente da Comissão. “No momento, apresentamos os dados da pesquisa ainda em processo de sistematização. Mesmo assim, eles causaram impacto no público e nas autoridades, pois a discrepância com os dados oficiais sobre feminicídio é imensa, da ordem de dezenas de vezes maior”, salienta Rose.
Após o lançamento oficial do documento, em março deste ano, a repercussão foi ampla na imprensa e também teve impactos nas ações do governo. “Em março, tivemos uma reunião com o Secretário Estadual de Segurança Pública e com representantes de vários departamentos e órgãos da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS). Após apresentarmos e debatermos os dados, a SSPDS se comprometeu em promover mudanças na forma de processar os dados de violência letal de gênero. Já na semana seguinte, a SSPDS publicou no Diário Oficial a adoção de algumas mudanças discutidas na reunião. Além disso, algumas políticas públicas e/ou medidas que reivindicamos desde 2018 vêm sendo atendidas pelo novo governo”, destaca.
A militante ressalta a importância do apoio da CESE para a construção dessa iniciativa. “Somos muito gratas à CESE por essa parceria. Não só pelo apoio financeiro, mas também político, ao confiar na capacidade técnica e no compromisso das militantes de nosso movimento e na força da nossa luta”. E completa afirmando que as mulheres seguem firmes na luta coletiva por justiça e igualdade. “As mulheres organizadas numa perspectiva feminista, lutam! Lutam por si e por outras mulheres. Sem as lutas feministas, que denunciam e confrontam essas relações, não temos como construir uma vida mais livre, justa e autônoma para nós mulheres. Para todas as mulheres”, finaliza.