Há aproximadamente dois anos, quando a ialorixá Jô Brandão de Nanã se mudou para um novo bairro de São Luís (MA), ela estava em busca de um espaço em que pudesse construir seu terreiro, celebrar seus ritos espirituais e festividades, receber seus filhos e também outras pessoas da comunidade.
Apesar de ter escolhido a localidade por orientação de seu orixá, Jô resolveu se mudar para lá antes de, de fato, iniciar a construção. Para ela, a convivência prévia com as pessoas que já viviam ali era algo indispensável à existência do terreiro naquela comunidade, principalmente para quebrar barreiras que a mãe de santo não tinha dúvidas de que teria de enfrentar.
E este não foi um processo rápido: passaram-se 18 meses até que ela se sentisse segura e confiante o suficiente para dar o próximo passo. No início, ela era apenas conhecida como “a moça de turbante”, “a mulher que só anda de branco” ou “com um monte de gente de branco atrás”. Jô só passou a receber a visita de agentes comunitários de saúde quando tomou a iniciativa de buscá-los/as e exigir seu direito.
“Eu queria entender essa comunidade primeiro, saber das relações, dos conflitos. Me relacionar com as pessoas para que elas pudessem nos conhecer e aceitar. Não queria que fôssemos vistos/as como algo secreto. Era um processo de desconstruir convivendo. Esse processo conjunto faz com que a comunidade sinta o terreiro como parte da comunidade. Não como algo externo que chega e que é responsabilidade só minha”, conta Jô.
Hoje ela diz vivenciar uma relação que considera boa com seus vizinhos e vizinhas, mas ressalta que é inevitavelmente uma pessoa observada. As pessoas da comunidade já entendem, por exemplo, que a Ialorixá tem uma relação diferenciada com natureza, de respeito com os seus ciclos, e compreendem o porquê de ela ser contra queimadas e se empenhar para manter limpo o rio, por exemplo, entre outras coisas.
Jô foi instruída pelo seu orixá para que seu terreiro fosse instalado naquele território e assim o fez. Mas entendeu que para que esse objetivo fosse cumprido, ela precisaria ser aceita pela comunidade antes de qualquer coisa. Criar vínculos com essas pessoas. Esse foi o meio que ela encontrou para tentar evitar algum tipo de intimidação, hostilização ou caso mais grave de racismo religioso no futuro. Um processo lento, porém, necessário.
Mas esta é uma história sintomaticamente do povo de terreiro e das religiões de matrizes africanas. Cirurgicamente marcada pelo racismo desde a sua origem. E cabe ressaltar: atualmente, a obra está em fase de planejamento. Portanto ainda nem é possível garantir que a ordem dos fatores irá, de fato, alterar os resultados.
E é aqui que devemos nos perguntar: Quantas igrejas são possíveis imaginar já terem passado por algo parecido? Quantos pastores/as, padres, bispas precisaram se dedicar durante um ano e meio de suas vidas apenas a construir uma boa relação com as pessoas de uma comunidade antes de instalar seus templos ali por medo de serem agredidos/as de alguma forma num momento posterior? Para Jô, não há coincidências neste processo.
“A igreja é vista naturalmente como o lugar da salvação. Quando ela chega nas comunidades, ela é bem-vinda. É chamada para isso. Para as pessoas, o terreiro representa ‘o negativo chegando no nosso espaço’. É algo ‘obscuro, feitiçaria, coisa do diabo’”, afirma. E este é apenas um aspecto do racismo velado que marca a trajetória de Jô e tantas outras pessoas vítimas de uma estrutura social apodrecida e racista. Um racismo igualmente cruel e adoecedor.
Apesar da violência policial, por exemplo, ser um aspecto mais evocado nas discussões sobre racismo – por conta da sua gravidade, fatores como a truculência, a constância, a contradição entre uma atuação que deveria representar o estado, responsável por proteger as mesmas pessoas que de maneira recorrente se tornam suas vítimas -, existem aspectos desse mesmo racismo que não são percebidos de maneira tão imediata.
O racismo religioso e velado
Não é obra do acaso que as religiões mais discriminadas sejam a de povos que projetam com orgulho a sua espiritualidade divergente da lógica eurocêntrica do cristianismo; muito menos que sejam as religiões que encontram sua origem no continente africano. Para Jô, essa é a definição do racismo religioso, que, na sua essência, também tem um recorte relacionado a grupos étnicos.
“Os tempos de colonização estabelecem uma referência do que é aceitável como prática religiosa. Tudo que está fora é um problema. As religiões de matriz africana sofrem o maior impacto do racismo religioso por serem de um continente negro, vítima da colonização da escravização e por serem diferenciadas, terem uma institucionalidade hierárquica diferente, fora do padrão cristão”, explica.
Para além da relação direta do povo de axé com a natureza e seus ciclos, Jô traz um exemplo, na sua avaliação, bastante ilustrador dessas diferenças.
“Nós trabalhamos numa perspectiva de evolução espiritual a partir do equilíbrio entre o positivo e o negativo, não da superação, da busca pela ausência de pecado, da santificação como transcendência sobrenatural do aceitável. Obviamente, isso é antagônico a essa perspectiva de santidade. Buscamos o equilíbrio entre dois aspectos que são vistos pela sociedade como moral. Por isso, não é algo bem recebido externamente”, complementa.
E esse racismo extrapola do campo das relações espirituais; permeia os pormenores do dia a dia. Segundo Jô, são raros os motoristas de aplicativo que não põem para tocar no rádio uma música gospel em suas viagens, ou mesmo cancelamentos sem justificativa ou justificados com uma evasiva qualquer. “Eles dizem ‘achei que você ia para outro destino. Não tenho como te levar’. Não informam o motivo, mas eu sei que é pelo racismo”.
No campo institucional, é preciso reconhecer o povo de axé para além da sua existência religiosa, enquanto sujeitos/as de direitos e políticas públicas. Há também um cunho social importante em sua presença nos espaços que atuam, que é política, social e de transformação das comunidades.
“Recebemos mulheres vítimas de violência e as orientamos a buscarem os espaços formais de acolhimento. Na saúde, atendemos pessoas para o cuidado mental, físico. Somos uma comunidade que detém um conhecimento, inclusive sobre ervas sagradas. No aspecto econômico: nós produzimos artesanatos – que não são adquiridos por conta desse racismo. Tudo isso mostra a nossa potencialidade de desenvolvimento local. Quando somos reconhecidos/as por isso, nos torna sujeitos de políticas públicas. Faz diferença.”
Para Jô, acima de tudo, é preciso que a sociedade reconheça os povos de terreiro enquanto vítimas. “Se não houver isso, corremos o risco de incorrer na ideia de que a superação do racismo seja obrigação e responsabilidade das próprias religiões de matriz africana. Exime os outros de responsabilidade por um processo de discriminação. E esse reconhecimento também é fundamental para elaboração de políticas públicas”, finaliza.
A CESE na luta antirracista
Neste mês de novembro, a CESE busca contar histórias como a de Jô para jogar luz sobre os casos em que o racismo às vezes pode passar despercebido. Para reforçar a afirmação de que, quando o assunto é racismo, nada é por acaso.
A CESE entende o racismo como gerador de injustiças contra pessoas negras e sempre apoiou movimentos, organizações e grupos deste segmento. Nos últimos 15 anos, foram cerca de 748 projetos apoiados no campo da luta antirracista, beneficiando cerca de 289 mil pessoas com um investimento de 6.8 milhões de reais. Neste Dia da Consciência Negra, a CESE reafirma a sua Política Institucional de Equidade Racial, na qual estão definidas estratégias para a superação do racismo no âmbito da gestão e ação institucionais.