“Quem conta seus males espanta?” Essa foi a pergunta-título que norteou os três dias de encontro de mulheres de movimentos sociais do Nordeste para debater os desafios da comunicação nas suas lutas. Realizado entre os dias 02 e 04 de agosto na CESE, a oficina reuniu 35 mulheres de 19 organizações para debater, compartilhar experiências e construir na prática novas ferramentas e possibilidades para a comunicação dos movimentos populares. O evento foi desenvolvido pela CESE em parceria com a Revista Afirmativa e faz parte do Programa Doar para Transformar (Giving for Change), iniciativa que tem o objetivo de fortalecer a influência dos movimentos sociais nas relações de poder entre Norte e Sul Global no âmbito da defesa de direitos.
No caso da CESE, o objetivo do programa Doar para Transformar passa pelo fortalecimento das mulheres do Nordeste. Segundo Viviane Hermida, assessora de projetos e formação da entidade, a oficina busca fortalecer a atuação destas organizações também no âmbito da comunicação.
“Nós sabemos que a comunicação é muito chave em vários aspectos na vida das organizações populares, seja pra fazer incidência política, denunciar violações de direitos ou mesmo pra fazer mobilização de recursos. E todas essas questões são muito importantes nesse programa. No fim, nós queremos que essas organizações de mulheres consigam gerar força política. E a gente acha que a comunicação é mais um elemento que contribui para que elas alcancem essas mudanças que a gente quer ver na sociedade”, explica.
Teoria e prática para avançar na luta
A oficina foi construída junto com a Revista Afirmativa, veículo de multimídia negra que também compõe a comunidade de prática do Doar para Transformar. Para Alane Reis, co-fundadora da Revista e uma das assessoras da oficina, os movimentos populares têm muitos desafios, mas também trazem importantes experiências no âmbito da comunicação.
“Mesmo a comunicação ainda sendo um aspecto da luta política do movimento feminista, dos movimentos sociais de maneira geral, é muito bom perceber como as mulheres negras, indígenas, estão recorrentemente criando estratégias, organizando seus próprios recursos pra conseguir comunicar suas lutas e fazendo isso de uma maneira muito sensível, com uma linguagem acessível, de uma forma que toca as pessoas”, salienta. “Acho que esse é o grande objetivo da comunicação. É tocar, é sensibilizar, é furar barreiras, furar bolhas, é convencer nossos pares também. Mas é principalmente ecoar o discurso da luta dos nossos movimentos”, completa a jornalista.
O encontro combinou momentos de debate – como a discussão sobre a hegemonia na mídia e o papel da comunicação feminista antirracista – com a realização de atividades práticas, como oficina de elaboração de release e gerenciamento de mídias sociais. Além de Alane Reis, outras companheiras trouxeram sua contribuição nos espaços, como Andressa Franco, também da Revista Afirmativa, Ceres Santos, professora de comunicação e ativista, Larissa Santiago, do Blogueiras Negras e Joanna Bennus, do Instituto Odara.
Para Viviane, a combinação de teoria e prática cumpre um papel central na formação. “A gente achou que era preciso fazer um mergulho para que a comunicação seja vista dessa forma estratégica, não apenas de uma forma operacional, mas também de refletir o que e como comunicar, quais são os obstáculos da mídia corporativa para as causas de defesa de direitos, as questões relacionadas à criminalização, a reprodução do machismo e racismo através da comunicação e também partilhar alguns saberes mais técnicos, como otimizar o uso de algumas ferramentas para fazer ecoar as vozes das mulheres”, explica.
Gerações de mulheres em luta
Mulheres negras, indígenas, da zona rural, das periferias, mães, estudantes, trabalhadoras, LBTs, de terreiro, cristãs, jovens, idosas. São muitas as identidades e experiências que as participantes do curso trouxeram e enriqueceram a formação. Vera Baroni, da Rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco, ressalta a importância dessa diversidade e da troca entre tantas gerações de mulheres – o que representa também a continuidade da luta.
“Eu tenho 78 anos, certamente eu sou a mais velha de todas que estão aqui. Fico muito feliz de ver como as mulheres, sobretudo as mais jovens, estão se jogando nesse legado que precisamos defender, dar continuidade, porque somos continuidade. As que vieram antes de nós tiveram uma tarefa, entregaram pra nós, e nós precisamos ter a certeza que elas estarão em boas mãos. Então eu fico feliz quando consigo participar de momentos de troca, de aprendizado, onde as mais novas estão presentes, trocam e ensinam”, salienta.
Vera, que é uma das lideranças históricas do feminismo negro, também resgata a contribuição secular das mulheres negras e indígenas na disputa da comunicação. “Talvez nesses últimos 20 anos, com o acúmulo de lutas que vem desde o Brasil colônia, as mulheres negras e as indígenas, que são parentes, têm conseguido furar essa bolha e dizer que temos muito o que contribuir, e mais do que isso, temos a nossa maneira própria de fazer essa contribuição”, salienta a dirigente.
Eline Fonseca, do Departamento de Mulheres Indígenas da APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), reforça o compromisso com esse legado de luta. “Eu sou jovem, comecei agora no movimento. Vendo essas mulheres que estão aí há anos, elas abriram portas pra que eu pudesse estar aqui falando, fazendo esse curso, e eu também quero abrir portas. Eu quero que seja mais fácil para as pessoas que vão vir depois de mim”, destaca a militante, esperançosa.
Aprendizado coletivo
A possibilidade de trocar experiências e aprender com mulheres tão diversas foi um dos elementos mais destacados pelas participantes. “O que fica de mais importante pra mim é essa troca, esse olho no olho. Sou uma mulher negra que atua na comunicação popular do movimento de mulheres negras, então dialogar com mulheres dos movimentos indígenas, movimentos rurais, é uma forma de ter essa troca que dá sentido à causa”, salienta Elizabeth Souza, da Rede de Mulheres Negras do Nordeste. “Eu estou saindo daqui mais energizada e mais disposta”, completa, sorridente.
Um dos desafios da turma foi com a questão da acessibilidade, tanto no espaço físico como a partir de um recorte para as discussões. Kelly Araújo, do Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com Baixa Visão, ressalta que debater questões caras para o movimento, como a necessidade de audiodescrição, legenda alternativa, e o recorte transversal dessa pauta é central para o aprendizado coletivo. “A gente entende que é uma via de mão dupla, uma troca. Os movimentos precisam garantir essa participação, estar juntas, e ter essa diversidade de corpos que somos – mulheres com deficiência, mulheres negras, indígenas, dentre outras”, ressalta.
“Digo às companheiras que aqui estão”
As mulheres presentes no encontro também puderam participar do lançamento do documentário “Digo às companheiras que aqui estão” na quarta (02). Produzido pela SOS Corpo e Parabelo Filmes, e dirigido por Sophia Branco e Luís Henrique Leal, a obra conta a trajetória de Lenira Carvalho, liderança popular de Recife e pioneira na luta das trabalhadoras domésticas no Nordeste.
A sala cheia do Cinema do Museu, no Corredor da Vitória, expressou a força da história de Lenira e a emoção das espectadoras com o filme. “É um trabalho muito rico de memória, de resgatar essa linha do tempo e relembrar que hoje em dia ainda tem trabalhadoras domésticas passando por situações difíceis”, salienta Thaynara Gouveia, da Associação das Trabalhadoras Domésticas de Campina Grande, durante a discussão da platéia sobre o filme.
O evento também contou com um debate com Carmen Silva, da SOS Corpo, Sophia Branco, diretora do filme, e Creuza Oliveira, presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD). “O filme é uma memória que comunica o passado mas nos coloca em condição de fazer uma conexão com o presente para pensar o futuro”, sintetiza Carmen durante a mesa.
Doar para Transformar
O programa Doar para Transformar (Giving for Change) é uma iniciativa desenvolvida no Brasil pela CESE com o apoio da cooperação holandesa Wilde Ganzen, através do Ministério das Relações Exteriores. A partir do apoio a projetos, campanhas, ações de incidência política e encontros de formação, a iniciativa busca contribuir para a adoção de práticas mais equitativas nas relações entre Norte e Sul Global. Além do Brasil, o Doar para Transformar envolve também outras sete nações do Sul Global – Burkina Faso, Etiópia, Gana, Quênia, Moçambique, Uganda e Palestina.
Confira aqui as fotos da oficina de comunicação.