Fogo numa escola indígena: a luta dos Krahô Kanela contra os incêndios criminosos no Cerrado

Este ano, o fogo consumiu mais de 8 milhões de hectares no Cerrado até setembro. Este número representa mais do que a área atingida na Amazônia e Pantanal juntos – cerca de 4,6 milhões e 1,3 milhão, respectivamente.

A educação popular e específica para comunidades tradicionais ainda é um desafio no Brasil. Experiências incríveis como as Escolas Família Agrícola, a Escola das Águas e as próprias escolas quilombolas e indígenas ainda são minorias que se garantem muito mais na vontade dos povos que a compõem do que em políticas públicas, de fato. E assim como seus povos, algumas dessas escolas estão inseridas em contextos extremamente violentos.

De acordo com o Censo Escolar 2022, apenas 1,9% das 178,3 mil escolas que oferecem o ensino básico no Brasil estão localizadas em Terras Indígenas.

Em meio aos incêndios criminosos que assolaram diversos territórios tradicionais em todo o Brasil esse ano, uma delas, localizada na Aldeia Catàmjê, do povo Krahô Kanela, às margens do Rio Formoso, no município de Lagoa da Confusão, foi inteiramente consumida pelo fogo.

 “O fogo que entrou no nosso território veio de uma fazenda, um plantador de soja e arroz irrigado. Veio, pulou o rio e ficou mais ou menos de 30 a 40 dias. Fizemos o possível, mas não conseguimos combater. Queimou a escola, a rede de energia, uma igrejinha, o abastecimento de água.”, relata o Cacique da Aldeia e brigadista Wagner Catamy Krahô Kanela. Ele conta que seu povo esperava melhorias em 2024, mas o contrato dos brigadistas foi reduzido. “Agora nós ficamos pensando como vai ser nos próximos anos”

O incêndio afetou diretamente 21 estudantes que dependem da unidade de ensino para estudar. Os alunos e alunas terão de frequentar um espaço provisório, instalado na Aldeia dias depois da perda, até que uma nova escola seja construída.

Bioma mais devastado

Em 2023, o Cerrado ultrapassou a Amazônia em área desmatada pela primeira vez: cerca de 1,1 milhão de hectares diante dos 454 mil ha do bioma amazônico. Análises preliminares de dados levantados pela da Comissão Pastoral da Terra não deixam dúvidas: a soja vem avançando cada vez mais sobre os territórios dos povos cerradeiros. O MATOPIBA é o maior retrato desse avanço.

Instituído em 2015, ainda no governo Dilma, o MATOPIBA é uma fronteira agrícola de 73 milhões de hectares que engloba partes dos territórios de Cerrado de Maranhão, Bahia, Piauí e Tocantins. Mas Tocantins é o único destes estados que “dedica” toda a sua extensão territorial ao MATOPIBA. Isso incentiva o avanço do agronegócio por todo o seu território. Aldeias, quilombos e outras comunidades tradicionais são territórios preservados. São essas as porções de terra que o agro deseja usurpar.

Este ano, o fogo consumiu mais de 8 milhões de hectares no Cerrado até setembro. Este número representa mais do que a área atingida na Amazônia e Pantanal juntos – cerca de 4,6 milhões e 1,3 milhão, respectivamente.

Localizada entre os rios Javaé e Araguaia, nas divisas de Tocantins, Goiás e Mato Grosso, a Ilha do Bananal abriga diversos povos indígenas, dentre eles os Krahô Kanela, É uma região fortemente atravessada pela atuação do agronegócio. Eliane Franco Martins, da Coordenação do Conselho Indigenista Missionário, regional Tocantins/Goiás (CIMI-GOTO), explica que todos os anos, a Ilha queima muito.

“Aqui, na parte do Cerrado, quando caem as folhas para renovação, tem muito combustível. Também tem muito capim. Quando a terra tá nua, não tem nada que segure e o fogo se espalha rápido. Muito vento, pouca chuva, agro forte…”.

Cercados pelo Agro

Eliane conta que a Terra Indígena Krahô Kanela tem demarcados 7 mil hectares, mas cerca de 25 mil que também são território ancestral dos indígenas estão sob a posse de fazendeiros. Trata-se de uma terra que passa cerca de seis meses alagada e outros seis na seca. O processo de demarcação já está parado há mais de 10 anos. Lá, os povos originários vivem cercados por fazendas de soja, melancia, arroz e feijão.

O estado do Tocantins possui um projeto de irrigação famoso no Brasil. A água do Rio Formoso é desviada diariamente para a irrigação dessas monoculturas. Assim como Pantanal e Amazônia, o Cerrado também vive uma estiagem. Mas, nesse esquema, as fazendas também possuem grandes reservatórios que armazenam mais de 300 milhões de metros cúbicos de água.

Bombas gigantes capturam água para agronegócio irrigado de arroz, causando seca na Bacia do Rio Formoso, em 2020, no Tocantins.
Crédito: MP-TO

“Os rios, de agosto até novembro, praticamente estão mortos. Só tem areia – o Rio Formoso, o Javaé, o Lago Verde, o Urubu. Esses lagos e rios estão comprometidos. Os lagos, principalmente, estão mortos. Só tem capim dentro deles. Há uma mudança que não existia”, explica Wagner.

Dentre fogo, seca e envenenamento por agrotóxicos, as violências contra os indígenas e contra o seu território são tantas que estão alterando os modos tradicionais com risco de ser algo irreversível.

“Aqui nós plantamos roças tradicionais – a mandioca, inhame, milho, batata, feijão, andu, cabaça, tudo isso a gente produz. Mas essa produção está cada vez mais ameaçada porque não se consegue mais fazer a roça como era anteriormente, por causa dos incêndios. Temos que apelar para o trator, fazer pequenos quintais. É uma mudança no modo de vida tradicional”, desabafa o Cacique.

Direitos negados em terras provisórias

É também nesse contexto que existem casos como o dos indígenas Krahô Takaywrá. Há mais de 10 anos, eles vivem em um pedaço de terra de 1 hectare. Como se fosse um campo de futebol. A área fica localizada dentro de uma reserva ambiental do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). E, por isso, motivo eles têm uma vida ainda mais limitada.

“Eles estão há muito tempo em processo de demarcação. Como vivem na reserva, não podem fazer muita coisa. Eles não têm permissão para caçar para se alimentar ou tirar madeira para construir casas. Também não podem fazer uma roça porque a terra é muito pequena. A água já está contaminada por agrotóxicos. Em termos de infraestrutura, sustentabilidade e segurança alimentar, estão muito prejudicados”, relata Eliane.

Povos isolados

Por conta do fogo, os povos isolados que vivem na Mata do Mamão, também localizada na Ilha do Bananal, já começam a ser vistos com mais frequência. A área é conhecida como o último refúgio de um grupo de indígenas Avá Canoeiro. Eliane afirma que cerca de 80% do território já foi consumido pelo fogo.

“Este ano, tivemos notícias de quatro aparições dos isolados próximo às aldeias. O risco de contato é eminente. Com o fogo cada vez maior, a falta d’água, eles vão ser forçados a sair das suas terras, e vão se refugiar próximo de onde já têm aldeias formadas. Vai acontecer a qualquer momento”, afirma Eliane.

Apoio Emergencial em meio ao fogo

Mediante esses incêndios, a CESE dialogou com a Articulação Agro é Fogo colocando à disposição um apoio emergencial para comunidades mais atingidas na Amazônia, Cerrado e Pantanal, contando com o acompanhamento de uma organização local parceira. Neste caso, O CIMI-GOTO. A proposta prevê apoio para compra de alimentos/cestas básicas, água potável, EPIs de combate aos incêndios, mudas e/ou outros itens.

Em Tocantins, o apoio foi destinado à compra de cestas básicas, água potável, mochila costal e lona. “No Cerrado, no estado do Tocantins, tivemos o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Conseguimos contemplar 3 Aldeias de 3 povos indígenas. Aldeia Itaho, do povo Ava Canoeiro; Aldeia Catemje, do povo Kraho Kanela; e Aldeia Takaywra, do povo Krahô”, explica a Secretária Executiva da Articulação Agro é Fogo, Jaqueline Vaz.

“O trabalho conjunto feito pela CESE, Agro é Fogo e CIMI-GOTO pôde amenizar o sofrimento e pânico vivido por essas famílias”, finaliza.

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