O intercâmbio entre diferentes comunidades é sempre um processo rico de troca de conhecimentos, mas também traz um sentimento de renovação das resistências para seguir na luta. A visita do grupo que participou da formação “Partilhando Saberes pelos Caminhos do Cerrado” ao Quilombo Ribeirão da Mutuca, na Comunidade de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento (MT), não foi diferente.
A atividade foi realizada pela CESE com apoio do Instituto Ibirapitanga, entre os dias 28 e 30 de novembro. Durante a visita, eles/as ouviram a história de luta da comunidade desde suas origens até os dias de hoje em que seu povo briga pela titulação do território. O grupo também conheceu as produções artesanais e roças do quilombo, em especial do milho crioulo.
As lideranças do Quilombo da Mutuca contaram como sua família foi enganada por um fazendeiro em meados do século passado e tiveram suas terras roubadas. Até os dias atuais, a comunidade enfrenta diversas violações, como o avanço do agronegócio e da mineração, que cobiçam explorar os territórios do Mata Cavalo. Os relatos também dão conta de intimidação feita por drones durante as noites em dias específicos.
Algumas lideranças do quilombo chegaram a ser presas injustamente em uma ação policial violenta realizada no território. Elas contam que foram extremamente hostilizadas pelos militares. Neste episódio as mulheres tomaram a frente da resistência para tentar impedir que a polícia levasse seus familiares. As pessoas foram soltas no mesmo dia, pois não havia nenhum motivo que justificasse sua prisão.
O Quilombo da Mutuca luta pela manutenção dos seus modos de vida, desde as roças espalhadas por todo o território às produções artesanais que valorizam a figura do preto velho, das bonecas abayomi, da produção de diversos itens a partir da banana, fruto tradicional do quilombo e que dá nome a um grande evento realizado pela comunidade desde 2008. Momento em que a fruta é valorizada enquanto item ancestral do quilombo, a Festa da Banana já chegou a reunir cerca de 5 mil pessoas no território do Mata Cavalo.
Delaine Rocha, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, enxerga na luta do Quilombo da Mutuca uma grande semelhança com a de sua comunidade. “A gente tem um conflito contra grandes fazendeiros. Eles vão se apossando de terras e os lugares que eles ocupam, nós não temos mais acesso. Igarapés que a gente frequentava, hoje não podemos mais. Nosso meio de vida é a pesca, mas se ultrapassarmos esses limites um pouco que seja, eles atiram na gente”.
Hoje a sua comunidade enfrenta casos constantes de deslizamento de terras que vem destruindo as casas de pescadores/as. Eles/as suspeitam de que a chegada dos fazendeiros, com suas grandes criações de gado, alterou os fluxos de água da região, substituindo um igarapé por uma corrente de água salgada. Segundo Delaine, isso afetou a composição solo e é uma das principais causas dos deslizes de terra.
Raimundo de Sousa, da Associação de Preservação Ambiental do Brejo Verde, Praia e Catolês, afirma que também não vê diferenças na luta de sua comunidade e dos quilombolas do Mata Cavalo. “Eu também vi meus familiares serem presos e levados. Pai, mãe, tio, tia. Nossas lutas na Bahia são semelhantes, e não é de hoje. Nós somos companheiros e lutamos juntos”
Trocas de saberes
Para além do intercâmbio, a programação também contou com um encontro e uma oficina de projetos. Indígenas, quilombolas, vazanteiros/as, geraizeiros/as, pescadoras, mulheres negras e jovens participaram da formação. Foram três dias de troca de saberes e afetos, em meio a debates sobre impactos do racismo e do machismo em seus territórios e no Cerrado como um todo, nos sistemas alimentares, na vida das mulheres, entre outros.
Ao relacionar as discussões realizadas em grupo com a vivência e histórias ouvidas no Quilombo, Idalice Rodrigues, do MST-MT, destacou os impactos sentidos nas comunidades por conta das mudanças climáticas, revelando a gravidade dos efeitos do racismo na produção e nos sistemas agroalimentares nos campos – a mudança nos ciclos das águas, das sementes.
“As plantações mudam os períodos e afetam diretamente a produção de alimento de subsistência, que é o mais grave. Eu não sei se vou ter mandioca para comer, para dar aos animais. É uma dificuldade enfrentada tanto nos assentamentos quanto no quilombo.” Ela ainda enfatiza a desigualdade presente neste quadro, pois os maiores efeitos dessas mudanças afetam muito mais as pessoas que vão na contramão do modelo de desenvolvimento predatório gerador da crise climática.
Em uma fala sobre o impacto do racismo institucional na vida dos povos e comunidades tradicionais, Karine Waridã, da Articulação da Juventude Xakriabá, denuncia a ausência de políticas públicas e mecanismos para manutenção dessas pessoas em universidades. “Hoje existem as cotas, mas não tem estrutura para manter os indígenas aldeados, quilombolas das comunidades. As formas de aprendizagem, os autores trabalhados completamente distantes do que conhecemos fora daquele ambiente”.
A quilombola e professora Maria Auxiliadora Oliveira, da Associação da Comunidade Negral Rural Quilombo Ribeirão da Mutuca (Acorquirim), trouxe como exemplo de contraponto ao modelo do agronegócio, regado a agrotóxicos, os modos tradicionais de produção do seu povo.
“Nós plantamos em lavouras consorciadas. No meio do arroz, tem um carreirão de milho, outra de quiabo, por baixo, vem o maxixe, a abóbora, a melancia. Dentre elas, tem plantas que são repelentes naturais de insetos, como gergelim. E também usamos defensivos naturais, feitos à base de folha de mamona, urina e fezes de vaca, fermentados em um tambor. É excelente pra repelir insetos. Então não precisa de agrotóxico”.
A formação aconteceu no Centro de Formação e Pesquisa Olga Benário Prestes, no Assentamento Dorcelina Folador, em Várzea Grande.
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