Entre os meses de junho e julho, a CESE realizou quatro encontros formativos sobre a regularização de terreiros, enquanto instrumento de fortalecimento institucional dessas organizações. As formações foram voltadas para os estados da Amazônia Brasileira. Os encontros acontecem após a realização de um mapeamento em busca de terreiros que estivessem com pendências administrativas impedindo a sua regularização na região.
Dentro do campo da regularização de terreiros, o direito à liberdade religiosa; as formas de constituição da personalidade jurídica de terreiros; como criar uma associação de terreiro; elaboração de estatuto de associação de terreiro; e elaboração de projeto. Ao final das oficinas, os grupos foram estimulados a enviar projetos para a CESE a fim de resolverem suas pendências.
Ao todo, foram encontrados 67 terreiros no mapeamento em sete dos nove estados da Amazônia – exceção de Roraima e Tocantins. Eles fazem parte da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO). Quinze delas participaram das formações. Os relatos davam conta de como os entraves administrativos vinham impedindo a regularização de terreiros, mas também de racismo por conta disso.
Por que buscar a regularização de terreiros na Amazônia?
Perdas de parcerias, racismo explícito, engessamento de ações que beneficiam comunidades inteiras, dentre outros pontos. Os relatos que surgiram durante a formação mostram que a regularização de terreiros é uma estratégia de enfrentamento ao racismo.
Criminalização pelo CPNJ
César Torres é Babalorixá do Ilê Àsé de Yemanjá Ogunté – Oko Irim Okan – Casa de Yemanjá, no interior de Rondônia. Fundado há 12 anos, em junho de 2012, seu terreiro ainda não foi regularizado, apesar de ser a fonte de quatro projetos sociais em sua comunidade: corte de cabelo, aulas de reforço 1 vez na semana, doação de roupas e técnicas de redação para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), além de distribuir alimentos para pessoas em situação de rua uma vez por mês.
São comuns relatos de lideranças de religiões de matrizes africanas – e outras espiritualidades – que realizam ações sociais em suas comunidades. Mas mesmo o acolhimento e serviços prestados não são suficientes para barrar o racismo, que se reinventa. E até mesmo a ausência de CNPJ já foi motivo para discurso de ódio alheio, conta o Babalorixá.
Segundo César, um vereador da Bancada Evangélica de sua cidade tomou o plenário da Casa do Povo para proferir discurso de ódio contra as religiões de matrizes africanas e seus povos quando uma fiel de sua igreja manifestou seu descontentamento acerca de panfletos que haviam sido colados pela cidade.
“Ele nos chamava de ‘bando de Satanás’, ‘feiticeiros’, entre outros absurdos. Reunimos um grupo de Pais e Filhos de Santo e fomos na Câmara de Vereadores protestar. E foi aí que ele me perguntou se nós éramos uma instituição ou apenas um bando de macumbeiros, uma vez que não tínhamos um CNPJ”, relata César.
“Hoje em dia não conseguimos mandar fechar a rua para fazer uma festa. Fazer parcerias com a Secretaria de Saúde do Município para distribuir kits femininos, prestar atendimento ambulatorial. Também estamos dependendo disso para regularizar um terreno. São algumas coisas que não conseguimos avançar por conta da ausência desse CNPJ.”, explica César.
Fim das parcerias
O caso do Umbanda Estrela Guia, no interior do Acre, também é semelhante. O terreiro era regularizado, mas após a saída de algumas lideranças, surgiram pendências junto ao cartório que geraram entraves. Eucilene Furtado, segunda secretária, conta que o terreiro perdeu um convênio com a Secretaria Municipal de Ação Social, através do qual era realizado um Natal Solidário que alcançava 40 famílias de bairros periféricos.
Além de uma tradicional sopa solidária às sextas-feiras, o grupo também realizava distribuição de cestas básicas em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos e uma festa de dia das crianças, em bairros periféricos de um município da região. Cursos profissionalizantes de corte e costura, de reutilização de materiais recicláveis, como pneu, também faziam parte da lista de ações. “A gente conseguia trazer os parceiros, as maquinas, realizar oficina pra fazer sabão”, conta Eucilene
A conjuntura política também foi definitiva no caso do Estrela Guia. Com a saída de políticos aliados, a atenção aos povos de terreiro na região foi diminuindo, dando lugar ao preconceito.
Próximos passos
Para além do lado espiritual, os serviços realizados pelos terreiros nas comunidades no seu entorno são um traço fundamental da sua existência em seus territórios. Com as formações e o projeto apoiado, ambos os terreiros poderão caminhar para a sua regularização e retomada de ações que fazem parte de sua essência.
“Está sendo fundamental! A gente conseguiu se nortear melhor. Também foi mais fácil de transmitir essas informações para os Filhos de Axé, após a formação. Se a oportunidade não tivesse aparecido, estaríamos com dificuldade até agora. Agradeço à CESE pelo convite!”, afirma César.
“Tivemos algumas barreiras com questões burocráticas, mas a formação nos ajudou a saber com quem devemos tratar determinados assuntos, qual o caminho seguir, qual órgão procurar. Vamos conseguir a regularização para retomarmos os projetos, as parcerias – ou fazer novas – e ajudar os moradores dos bairros periféricos, que é o mais importante”, pontua Eucilene.