Cerrado: patrimônio brasileiro, território de resistência

Por Flávia Quirino

Era 3 de março de 1972, quando moradores do então distrito de Santa Terezinha, localizado no município de Luciara, no Mato Grosso, venceram uma disputa por terra contra a Companhia de Desenvolvimento do Araguaia. A luta travada por cerca de cinco anos pelo direito à terra ficou conhecida como Dia da Vitória, comemorada até os dias atuais pela comunidade. O distrito foi emancipado em 4 de março do mesmo ano.

A vitória da comunidade ribeirinha contou com um apoio importante, a Igreja Católica, por meio da Prelazia de São Félix do Araguaia, que tem entre seus membros mais notórios Dom Pedro Casaldáliga (em memória).

A história de resistência da comunidade Santa Terezinha é contada pelo padre Luiz Cláudio da Silva, membro da Comissão Pastoral da Terra no Mato Grosso, e também registrada no livro “Conflito no Araguaia – peões e posseiros contra a grande empresa”, de autoria de Neide Esterci e publicado originalmente em 1987.

“Tá no DNA deles e delas a luta, a resistência e a reza como fortalecimento dessa resistência. Expulsaram jagunços, fazendeiros e polícia, que iriam derrubar a antiga cooperativa que o povo construiu e a comunidade os expulsou. É o dia da vitória. E até hoje celebram isso, é uma festa civil, mas é a igreja que puxa essa celebração, então fé e vida estão muito ligadas, existe um senso de partilha  muito grande”, conta o padre Luiz Cláudio.

A trajetória das ribeirinhas e ribeirinhos de Santa Terezinha é um exemplo da história de lutas dos povos indígenas e comunidades tradicionais, de fundo e fecho de pasto,  trabalhadoras e trabalhadores rurais que vivem nos estados que integram a região do Cerrado brasileiro, com uma área de 2.036.448 km², cerca de 22% do território nacional, o Cerrado é considerado o segundo maior bioma da América do Sul e a região de savana com a biodiversidade mais rica do planeta, berço das águas. A maior bacia hidrográfica totalmente brasileira, Tocantins-Araguaia, tem sua maior parte localizada no Cerrado.

A região que abriga terras indígenas, territórios quilombolas, além de outros povos e comunidades tradicionais como geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, apanhadores de flores sempre-vivas, também convive com inúmeras ameaças: conflitos por terra, água e território; os efeitos do agronegócio, das monoculturas e do uso indiscriminado de agrotóxicos. Os efeitos são nocivos a comunidades inteiras e ao bioma do Cerrado.

Tribunal Permanente dos Povos (TPP) – Thomas Bauer/CPT-H3000

Essas ameaças foram comprovadas no veredito do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, apresentado em julho de 2022, no qual se pode ler que: “a vida é arrancada pelo agro-hidro-mínero-negócio, a diversidade das plantas vira monocultivo de soja, eucalipto e arroz pelas ações desses senhores de guerra. Seus atos de destruição sistemática são encobertos e legitimados na linguagem, ‘purificados’ como ‘atividades produtivas’, ‘desenvolvimento’ e ‘progresso’, suas armas químicas que envenenam ar, água e terra são chamadas de agrotóxicos e vendidas em embalagens comerciais”.

Os impactos dos agrotóxicos no Cerrado é ponto de pesquisa da publicação “Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado”, lançada em maio de 2023 pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, que realizou análises toxicológicas e ambientais sobre a qualidade das águas em comunidades de sete territórios da região.

A pesquisa aponta que o monocultivo de soja é campeão no uso de pesticidas no Brasil. Do total de agrotóxicos utilizados no país, mais de 63% são destinados à soja, seguida pelo milho e cana-de-açúcar. A cada ano são despejados mais de 600 milhões de litros de agrotóxicos em todo o Cerrado.

Agronegócio, monocultura, desmatamento e o uso de venenos têm uma relação simbiótica. E paralelo a isso, povos e comunidades tradicionais cerratenses atuam na linha de frente da resistência por seus territórios e também como agentes de conservação do próprio Cerrado.

Um povo resistente e de reza

As disputas, as resistências e as lutas se dão sabidamente em outros campos. Se por um lado, as comunidades resistem a tantas investidas contrárias à sua própria existência, por outro, estão alicerçadas pelas espiritualidades, pela fé e religiosidade.

“É um povo de reza”, como disse o padre Luiz Cláudio. Por mais que ele refira a uma comunidade específica, a síntese pode ser aplicada facilmente a outros contextos sociais do Cerrado.

Segundo o padre Luiz Claudio, a relação sujeito e espiritualidade é inerente à vida. “A religiosidade é uma das partes constitutivas do ser humano. É como a sexualidade, é como respirar, nosso organismo está ali vivo, é o sopro de Deus, o problema é que as pessoas separam. A religiosidade é parte intrínseca do ser humano”, observa o religioso, que aponta ainda como fundamental essa relação para alimentar a coragem de mulheres e homens que persistem pelos seus direitos.

Pesquisadora, pastora luterana, professora aposentada de História Indígena na Universidade Federal da Grande Dourados (Mato Grosso do Sul), Graciela Chamorro ressalta que “a espiritualidade é uma matriz, uma fonte de vitalidade, de resiliência, de reinvenção, de resistência, estou me acostumando a usar a palavra ‘’reXistência’’. Porque é através dessas criações, dessas experiências, que esses grupos, fora do eixo hegemônico, existem através da resistência. Eles enfrentam com seus modos de compreender o mundo e de agir no mundo as formas hegemônicas que lhes são apresentadas como verdadeiras, salvadoras”.

Para uma parte dos povos indígenas Kaiowá e Guarani, no Mato Grosso do Sul, essa espiritualidade é alimentada pela presença das casas de rezas, mantidas pelas anciãs Nhandesys e anciãos Nhanderus, que são rezadeiras tradicionais, guardiãs e guardiões das farmácias vivas e culturas ancestrais.

“Fazemos remédio, fazemos o trabalho de Nhandesys, faz todas as coisas para as pessoas, para a comunidade, quando precisam de um remédio, a gente procura longe no mato pra trazer, pra salvar a vida do ser humano, do parente, não é só parentagem, é toda pessoa que precisa, como Nhãnderu Guasu deu esse poder, é para salvar a vida de qualquer pessoa. Para nós não tem diferença quando a gente faz a nossa reza, benzimento, é para todo mundo ficar bem”, explicou a nhandesy Alda Kaiowá, durante o  “Diálogos Ecumênicos e Inter-religiosos: espiritualidade indígena”, evento realizado pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) em julho de 2020.

As Nhandesy e os Nhanderus são guardiões da espiritualidade indígena Kaiowá e Guarani e mantêm viva a tradição de seu povo, sobretudo diante das ameaças vivenciadas pelos seus povos.

Intolerância e racismo religioso

Em junho deste ano, a Kuñangue Aty Guasu – Grande Assembleia Das Mulheres Kaiowá e Guarani denunciou por meio do Dossiê “O Racismo e a Intolerância Religiosa: As sequelas de invasões (neo)pentecostais nos Corpos Territórios das Mulheres Kaiowá e Guarani/MS” os efeitos do racismo religioso ao povo indígena.

No documento, a Kunangue Aty Guasu denuncia que entre o ano de 2014 a fevereiro de 2022 foram queimadas 17 casas de rezas do povo Kaiowá e Guarani, seis apenas no ano de 2021. O documento também denuncia outras formas de violência contra Nhandesys, como ameaças, agressão física e violência sexual. “As não providências em relação aos casos de intolerância religiosa faz com que as rezas, os rituais tradicionais, sejam abafadas/silenciadas. Pois não há uma discussão legal de proteção às Nhandesys em situação de violência”, destaca trecho do Dossiê.

Construído coletivamente, o documento contém inúmeros relatos de situações de violências e também como isso afeta o modo de vida e os saberes do Kaiowá e Guarani. “Não tem como falar de intolerância religiosa sem falar da invasão aos nossos territórios, a demonização do nosso modo tradicional de ser, as tantas casas de rezas que acompanhamos virando cinzas nos últimos anos, as tantas vítimas que acolhemos, e a maioria delas mulheres idosas”, aponta outro trecho do Dossiê. Em luta pela demarcação de seus territórios, os indígenas apontam que a intolerância religiosa está relacionada também à falta definitiva de demarcação.

Uma nota técnica, realizada pelo cientista político Victor Araújo, associado ao Centro de Estudos da Metrópole, da Universidade de São Paulo, observou que o estado de Mato Grosso do Sul é o terceiro do país com mais igrejas evangélicas, são mais de 60 igrejas por 100 mil habitantes. A pesquisa trata sobre o surgimento e expansão das igrejas evangélicas no país, no período de 1920 a 2019. Os dados desta pesquisa ajudam a compreender as denúncias realizadas no dossiê das mulheres indígenas Kaiowá e Guarani.

“Na reserva de Dourados (localizada em MS, existem cerca de 15 mil indígenas), temos mais de 100 estabelecimentos sede de cultos religiosos cristãos, se chamam evangélicos, pentecostais, de diversas maneiras, mas nós temos três locais de culto tradicional, com pouquíssima gente frequentando. Uma minoria que mantém esses locais com ajuda de fora, essa é uma realidade que predomina e a maioria deles vão às igrejas pentecostais, com cultos diários”, conta Graciela Chamorro.

Para a pesquisadora, existem quatro motivos de oração que levam as pessoas indígenas a buscarem as igrejas. “A questão do trabalho, ter a carteira de trabalho é um objeto de oração; o alcoolismo, para largar de beber; o suicídio, para parar de pensar em se suicidar e daí seguem outros motivos, como doenças, mas são esses motivos que tem a ver com a vida presente”. De acordo com Chamorro, são muitos aspectos e situações que ao longo dos anos fizeram com que os indígenas se aproximassem dessas igrejas, que de alguma forma suprem a antiga organização social, que eram macro-familiares, e agora se tornaram organizações religiosas.

A situação econômica, social e de resistência dos povos indígenas, apontam para uma situação complexa em seus territórios com a aproximação de não-indígenas. Ao longo dos anos, são inúmeras as denúncias relacionadas às situações de violência impostas a estes povos.

A diversidade cultural, religiosa e social dos povos que integram o Cerrado brasileiro está aliada aos processos de resistência que na maioria das vezes está associada à luta contínua por seus territórios.

Projeto de Emenda Constitucional 504 de 2010 (PEC 504)

Com mais da metade de sua área devastada, o Cerrado ainda não recebe a mesma proteção que outros biomas. Por isso, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) elaboraram uma nota técnica sobre o Projeto de Emenda Constitucional 504 de 2010 (PEC 504), que propõe transformar Caatinga e Cerrado em patrimônios nacionais, protegidos pela Constituição Federal.

Assinada por mais de 50 organizações e movimentos sociais, a nota evidencia a necessidade de aprovação da PEC para a proteção dos dois biomas e de seus povos. O equilíbrio ambiental do país depende disso: é urgente e necessário o reconhecimento do Cerrado como patrimônio nacional.

Cerrado é patrimônio brasileiro, é território de resistência e de transformação. Isso é o que vemos nas terras indígenas, nas comunidades quilombolas e tradicionais cerratenses, na força e na espiritualidade de seus povos.

Sobre a série Território Vivo

Nesta série especial, produzida em parceria com a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), mostramos o papel desempenhado por povos e comunidades tradicionais do Cerrado no combate às mudanças climáticas sob a perspectiva dos direitos territoriais. Por meio das narrativas das comunidades, destacamos como seus modos de vida são fundamentais para superar a crise climática, dando ênfase à importância de povos indígenas, comunidades quilombolas, mulheres, extrativistas e outras populações tradicionais terem seus direitos territoriais garantidos. Ouça os episódios na sua plataforma de áudio favorita.