“A solução para a crise climática vem dos territórios. Enquanto o dinheiro guiar as decisões, não vamos resolver. Será o fim da humanidade. Para algumas pessoas vai chegar antes, para outras, depois. Mas nós não estamos no mesmo barco. Estamos no mesmo mar. E vai ter gente de iate e gente agarrada numa árvore.” Essa fala é de Joyce Paixão, mulher negra da Frente de Luta de Pernambuco.
A afirmação veio no seminário virtual “O esperançar dos povos do campo, das florestas, das águas e das cidades”, realizado pela CESE nos dias 6 e 7 de novembro, com apoio de Misereor. O encontrou buscou debater as adversidades e complexidades da relação entre campo e cidade, mas também as possibilidades de articulação entre os movimentos destes territórios. Mais de 70 pessoas de diferentes estados, povos e tradições participaram.
Ao longo de dois dias, o encontro possibilitou o aprofundamento sobre essas intersecções entre o campo e a cidade a partir de alguns eixos, como as eleições – a princípio municipais, mas que se também alcança a vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos –, crise e justiça climática, aliança campo e cidade, a importância da agricultura familiar e da agroecologia, e a resistência em várias frentes.
Crise e Justiça Climática
A desigualdade é um dos marcadores mais fortes promovidos pelo modelo de desenvolvimento baseado no acúmulo e exploração do meio ambiente. Os movimentos sociais e comunidades tradicionais têm uma certeza sobre a crise climática: ela não atinge a todos da mesma forma. Aqueles que são os maiores responsáveis pela crise serão os menos afetados; os que defendem o planeta serão os primeiros a sofrer as consequências.
Para ilustrar a injustiça climática promovida pelo capital, Joyce trouxe um exemplo de Recife, quando a cidade foi atingida por fortes chuvas em 2022. “Eu moro no segundo maior bairro de Recife. Aqui tem duas universidades. Essa área teve alguns pontos de alagamento. Numa favela a 1km dali, a água subiu a um nível de 5m”, conta Joyce, em um exemplo claro de desigualdade em acesso a políticas públicas”.
Carlos Magno, do Centro Sabiá, enfatiza que a crise climática é sobre a gente. “Comunidades inteiras vão ser abandonadas. Há um estresse hídrico tão alto que inviabiliza a continuidade no território. Pessoas que não conseguem mais produzir macaxeira, variados tipos de feijão, etc. A crise climática é sobre a gente. É sobre a minha filha que não vai poder ver a paisagem e os animais com os quais eu cresci”, desabafa.
A pescadora e quilombola Elionice Sacramento fala da dor que a crise traz ao seu povo. “A maré que costumava vir em março, abril, nos orientava a não produzir em determinadas áreas nesse período. Essa maré mudou. Temos visto beiras de praias, nossos roçados, sendo constantemente alagados, mas de maneira nenhuma iremos responsabilizar a água por isso. A água para nós é sagrada. Garante culto, lazer, alimento. A crise é consequência de um modelo de desenvolvimento que é escolha, inclusive, do governo brasileiro”.
Aliança Campo e Cidade contra a crise do capital
Levy Nascimento, do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD), traz uma fala que diz sobre uma violência sofrida tanto nas cidades quanto no campo. Seja a expulsão de comunidades centenárias para construção de um condomínio ou parque eólico, ou despejo de centenas de moradores de um bairro periférico para estruturação de uma linha férrea. Ambos têm por motivação o lucro de alguns.
“O capital sempre soube onde tá a riqueza: na exploração do trabalhador e na matéria prima da natureza. O capital sabe que essa relação com o território não é só material, é identitária, cultural, subjetiva. Por isso querem matar nossa ancestralidade, para nos desconectar.”
Ele reforça a importância da união entre campo e cidade. “Precisamos ter cuidado com as nossas diferenças nesse momento e prestar atenção ao que nos une, traz unidade pro nosso campo democrático e popular. Investir em formação, intercâmbio, debate sobre rumo de narrativas, de perspectivas.
Joyce foi uma das mais enfáticas em pontuar a necessidade de se fortalecer a aliança entre o campo e a cidade, partindo do pressuposto de que, no âmbito da luta e da resistência, essas populações são vítimas de processos semelhantes. “Seja no campo ou na cidade, os povos periféricos sofrem violações de direitos básicos, a falta de políticas públicas. Óbvio que cada território tem particularidades, mas se trata de uma mesma cúpula esmagando cada um desses povos simultaneamente.”
Campo
Um exemplo trazido por Edivagno Rios, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), ilustra bem a fala de Joyce.
“O estado está a serviço do capital. O agro detém 76% das terras agricultáveis. O Plano Safra destina 400 bilhões em crédito aos grandes fazendeiros que plantam para exportar; produzem fome, miséria, desemprego. Agricultura familiar fica com 70 bi, ainda cheios de burocracias que limitam o acesso real dos pequenos produtores. Muitas pessoas não se enquadram”.
Mas mesmo com 24% das terras, 15% dos recursos, é a agricultura familiar quem produz 70% dos alimentos que chegam à mesa do povo. “Farinha, feijão, milho, produtos que enche a barriga do povo. Alimentos saudáveis, de qualidade, pra sustentar as famílias, os centros urbanos. O agro produz para exportar”, complementa.
Cidade
Graça Xavier, da União Nacional por Moradia Popular, relembra que o déficit habitacional do Brasil é uma escolha do governo. “Hoje há muito mais teto sem gente do que gente sem teto. Mais casa construída do que o próprio déficit habitacional. A moradia é a porta de entrada para outros direitos. Se você tem enderenço, você tem uma referência. Pode partir pra pensar em outras coisas, direito a comunidade, saúde, educação.”
Eleições
Por fim, as eleições municipais de 2024 acendem um alerta para o campo popular. Em sua fala, Carlos Magno apresenta dados que mostram que as cidades em que a direita e a extrema direita venceram as eleições somam 76,2% da população brasileira. Ainda que não seja um dado final sobre o que pensam todas essas pessoas, é preciso muita atenção.
Essa derrota pode ser lida como parte do que acontece em todo o mundo com o avanço da extrema direita. A eleição de Donald Trump suscitou importantes reflexões no debate.
Selma Mbaye, da CONAQ, expõe a crueldade que isso representa. “Viemos de uma década extremamente violenta para nós. Marielle, Mãe Bernadette, George Floyd, o feminicídio, o genocídio da juventude negra. Continente africano tentando fazer migração e tendo seus corpos rejeitados, em especial, na Europa. E Trump, um notório mentiroso, racista, foi eleito. Nem Beyoncé conseguiu lá. É um recado para 2026”.
Em um paralelo com o cenário norte-americano e brasileiro, Carlos Magno ressalta que os votos que elegem essas pessoas não são os da classe alta. “É preocupante. São também as comunidades. A gente precisa voltar e conquistar esses corações e mentes, para que não cheguemos a um tempo que não possamos mais voltar atrás.”
Elionice Sacramento chama atenção para a baixa aderência de candidaturas alinhadas à luta por direitos em comunidades mais empobrecidas. “Precisamos refletir sobre o porquê disso. Por que o nosso povo está vendendo o seu voto. Nosso povo não acredita na política partidária, então busca o seu, algo pequeno e imediato”.
As eleições municipais escancaram um enfraquecimento político da esquerda que não se resume às cidades. É com essas prefeituras que o Governo Federal precisará se aliar para conquistar votos nos pleitos que virão.