“Não, meu irmão, não me violentes.” (2 Samuel 13.12)
Somos leigas, diáconas, catequistas, ministras, reverendas, pastoras, religiosas, teólogas, bispas das mais diferentes expressões da tradição cristã. Somos pessoas batizadas, seguidoras fiéis de Jesus Cristo, o Nazareno. Nesta carta, invocamos o grito de Tamar para seu irmão Amnon que a violentou: “Não, meu irmão, não me violentes”.
A súplica de Tamar é a súplica que ecoa nas entrelinhas do nosso livro sagrado, a Bíblia. Esta também foi a súplica das muitas mulheres castigadas, queimadas e assassinadas pelo patriarcado religioso.
Nós somos as herdeiras das mulheres silenciadas e violentadas da tradição cristã.
Há muito nos contentamos em viver nosso sacerdócio geral comprometidas com o serviço à pessoa próxima. Não reivindicamos poder nem méritos, o que sempre desejamos foi cooperar para um discipulado de iguais que reconhecesse a dignidade de mulheres e homens, crianças, jovens e idosos.
Somos discípulas, assim como foram Maria, Salomé, Madalena, Marta e tantas outras, nossas ancestrais na fé, de quem o patriarcado retirou a expressão maior da fé cristã: o anúncio da ressurreição e, com isso, nos anulou, nos invisibilizou, nos calou e dominou.
A tradição cristã é marcada pelas feridas abertas da misoginia tornada dogma e doutrina. Toda a hierarquia, autointitulada sagrada, foi construída sobre bases sólidas de ódio a nós, mulheres.
Há uma semana fomos testemunhas da velha e ultrapassada cultura patriarcal que insiste em se renovar na tradição cristã. Aos brados, condenaram uma criança de dez anos por acessar o direito ao aborto legal e seguro. Assassino, assassina, assassinas foram os gritos dos arautos defensores de um cristianismo que não reconhecemos. Estes gritos de ódio foram contra a criança de dez anos, contra a avó, contra as enfermeiras, contra o médico, contra a assistente social, contra as mulheres feministas. Estes TEMPLÁRIOS da pós-modernidade atualizaram o grito da multidão insana que pediu a crucificação de Jesus de Nazaré: crucifique-o!
O circo dos horrores não parou. Ele prosseguiu com declarações e manifestações de homens cristãos ordenados, pouco afeitos às dores e sofrimento dos mais de 66 mil estupros registrados em 2018, 81,8% são mulheres. Destas mulheres, 50,9% são negras e 53,8% delas têm até 13 anos. Estes mesmos senhores não reconhecem como pecado os 26.700 partos de meninas menores de 15 anos realizados no Brasil no ano de 2018[1]. É quase certo que cada um destes partos seja resultado de violência sexual praticada por pais, tios, primos, avôs. Estes senhores certamente condenam e chamam de assassinas as seis meninas que passaram pelo procedimento de aborto legal e seguro depois de terem sido violentadas. Eles são igualmente incapazes de compaixão para com as 26 mil mães com idades entre 10 e 14 anos[2]. Nas celebrações cristãs não se faz oração para as 35 meninas de até 14 anos que, entre janeiro e junho, acessaram o direito ao aborto legal e seguro. Cada um destes abortos carrega consigo as marcas da violência. Em lugar da compaixão, bradam discursos alienantes e enaltecedores de modelos de famílias perfeitas que inexistem.
Não só as lideranças religiosas, guardiãs do patriarcado teológico e agenciadoras da misoginia nos espaços da fé, bradam reiteradas agressões às vítimas de violência sexual, também o poder público o faz ao desmontar as estruturas de denúncia da violência sexual e ao esmaecer a resposta do Estado.
Em reportagem de 23/08/2020[3] a Folha de São Paulo denuncia a exclusão das informações relacionadas ao encaminhamento e às respostas dadas às denúncias de violações, inclusive de crianças, do último relatório de direitos humanos, o Disque Direitos Humanos. Em 2019 foram formalizadas 86.837 denúncias de violência contra crianças e adolescentes, representando 55% do total recebido e um aumento de 13.9% em relação ao ano anterior. Não há dados claros com respeito à resposta do Estado em 2019, no entanto, considerando-se o ano de 2018 no qual apenas 13% das denúncias obtiveram retorno, é possível auferir que a resposta é irrisória.
A resposta mínima por parte do Estado parece indicar uma política pública de conivência com a violência praticada contra meninas, adolescentes e mulheres. Um exemplo desta indicação pode ser observado no Estado do Espírito Santo onde, em 2019, 239 meninas de 10 a 13 anos sofreram violência sexual da qual resultou gravidez e em 2020, até 31 de julho, 159 meninas na mesma faixa etária haviam sido violadas tendo a gravidez como resultado. O HUCAM de Vitória, que é o hospital de referência para abortamentos legais, não realizou um abortamento legal sequer. De toda evidência, as meninas vítimas de violência sexual não obtêm o amparo das instituições públicas destinadas a socorrê-las.
Diante das reiteradas violências contra as meninas, adolescentes e mulheres do Brasil, nós dizemos: Não, nossos irmãos, nós não deixaremos que vocês nos violentem de novo! Cansamos de sermos silenciadas. Nós iremos denunciar este cristianismo distorcido que foi tornado cruz para nós, mulheres. Não deixaremos mais de falar sobre o direito ao aborto legal e seguro para evitar conflito. Não nos calaremos diante da perseguição às teólogas, pastoras, freiras, mulheres religiosas e não religiosas deste Brasil. Jesus de Nazaré nos autoriza a dizer: Chega! Basta de hipocrisia em nome da fé.
Terminamos esta carta agradecendo ao movimento feminista que soube demonstrar a compaixão irrestrita à menina de dez anos. Enquanto grupos religiosos destilavam ódio e agressão em nome de Deus, as mulheres feministas se fizeram as samaritanas que souberam demonstrar a incondicionalidade do amor.
Não, nossos irmãos, nós não deixaremos que vocês nos violentem de novo!
Organizações e coletivos com participação de mulheres cristãs
Campanha “Tire os fundamentalismos do Caminho – pela vida das mulheres”
Rede TEPALI – Rede de Teólogas, Pastoras, Ativistas e Líderes Cristãs no Brasil e na América Latina
Fórum de Gênero da Aliança de Batistas do Brasil
Frente de Evangélicas pela Legalização do Aborto – FEPLA
KOINONIA – Presença Ecumênica
Coletivo Mulheres, Políticas Públicas e Sociedade – MUPPS
Rede Ecumênica da Juventude
Núcleo Madalenas da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT
Rede Madalenas, Brasil
Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Brasil
Católicas pelo Direito de Decidir, Brasil
Organizações latino-americanas que assinam em solidariedade
Teólogas e Investigadoras Feministas de México
Tras las Huellas de Sophía, México
Con Efe Comunicaciones, Argentina
Con Perspectiva de Género SEMLA, México
Comunidad Teologica de México
Grupo de Estudios Multidisciplinarios sobre Religión e Incidencia Pública GEMRIP, Chile
Colectivo Shalom, México
Colectivo de Teólogas Feministas de Perú (COTEFEP)
Instituto de Derechos Humanos de Adolescentes, Niños, Niñas AC, México
Cultivando la Paz, Mexico
Frente Amplio Nacional en Defensa por la Defensa del Ambiente, México
Red solidaria Decada contra la Impunidad, México
[1] Dados do CLADEM (Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), no relatório Jugar o Parir – Embarazo Infantil Forzado en América Latina y el Caribe (2018)
[2] Dados tabulados pela BBC News Brasil no Sistema de Informações Hospitalares do SUS do Ministério da Saúde- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53807076
[3] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/governo-bolsonaro-desmonta-acao-de-combate-ao-abuso-de-criancas.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=comphomewa