“O preconceito é um fardo que confunde o passado, ameaça o futuro e torna o presente inacessível”. Essa reflexão, da poetisa negra norte-americana Maya Angelou e resgatada por Makota Celinha, marcou, em negrito, a proposta da Roda de diálogo “Entre tambores e sinos: a resistência do povo negro”, realizada nesta quinta-feira (12). Essa foi a última live do ano da série “Diálogos Ecumênicos e Inter-religiosos”, uma realização da CESE.
A conexão e intercâmbios entre as convidadas cristãs e de matrizes africanas propiciou que a Coordenadoria Ecumênica de Serviço pudesse adentrar este mês de novembro reafirmando seu compromisso com a luta antirracista e a promoção do diálogo entre as religiões e visibilizando a importância do pluralismo religioso no Brasil.
Oportunamente, a missão de abrir as falas da roda de diálogo ficou a cargo de Ekedi Denize, do Terreiro Casa Branca (Salvador-BA). Denize concedeu uma aula, contextualizando a chegada dos povos africanos escravizados no Brasil, detalhando a concentração especial na Bahia e ainda evidenciando a tradição genocida contra os/as pretos/as e povos indígenas.
“Apesar da reconhecida importância dos terreiros do candomblé para a sociedade brasileira, essas religiões sempre foram discriminadas e alvo de inúmeras situações de violência, desde o período de colonização até os dias atuais, por conta da intolerância religiosa e do racismo”, pontua. De acordo com dados trazidos pela Ekedi, o Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas e os/as adeptos/as de religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, são seus principais alvos.
Como anúncio e enfrentamento a essas violências, são destacadas por Ekedi Denize a organização dos terreiros de candomblé para a formação de redes em defesa de seus direitos, como exemplo a Rede contra a Intolerância Religiosa Makota Valdina.
Diante do relato, Sônia Mota, mediadora da roda e diretora da CESE, repudiou a instrumentalização da bíblia, usada como justificativa para o racismo religioso. “São quase dois casos de intolerância religiosa por dia! Não dá para assistir a isso passivamente. Aqui esperamos dar mais um passo para caminhar pela paz e construir diálogos frutíferos e salutares”, afirma, com esperança ativa.
Retratando as vivências, sabedorias e lutas da Região Norte, Mãe Beth (do Rudembo Ngunzo Wá de Bamburusema, da Nação Angola) sublinhou que não é só no mês de novembro que devemos lutar contra o racismo. “Aqui no Pará, nós começamos a colocar turbantes e ir para as ruas para quebrar esse olhar maldoso contra o povo negro e os povos tradicionais de matriz africana. Muitos pais de santo foram mortos violentamente ou expulsos daqui. Isso é feito por aqueles religiosos que, com uma bíblia na mão, invadem terreiros e fazem essas violências”, aponta.
As lutas se tornaram mais difíceis ainda com a pandemia do coronavírus, relata Mãe Beth. Mas os trabalhos sociais do terreiro não pararam e foram realizadas arrecadações de cestas básicas, com máscaras e cadernos de atividades para as crianças, de forma a fortalecer a comunidade.
Mãe Beth finalizou sua fala com um canto para o sol, emanando cura física, mental e espiritual a todos e todas. “O sol aquece no amanhecer e à noite atua na germinação, ele nos dá muita coisa. Que o sol brilhe em todos os segmentos de nossas vidas”.
A ativista e teóloga feminista negra, Reverenda Lilian, direcionou a fala à crítica de teorias eurocentradas no campo da Teologia e à visibilidade das lutas por fortalecer a africanidade de Jesus dentro da Pastoral Abraço Negro, da qual é coordenadora na Diocese Meridional na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil em Pernambuco. “A forma como a Teologia nos foi mostrada faz com que não acessemos nossa ancestralidade. Dialogar com terreiros é fundamental para que possamos, desde dentro, promover a decolonização do nosso fazer teológico”, ensina a Reverenda.
Para ser mesmo cristão/ã, na perspectiva de Lilian, é necessário se abrir ao diálogo inter-religioso e perceber as responsabilidades de cada um nesse cenário.
O manifesto pela laicidade do Estado foi um dos pontos que norteou a explanação de Makota Celinha (coordenadora geral do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira e colunista do Brasil de Fato-MG), de olho e em sintonia com as falas anteriores de combate à intolerância religiosa contra povos de religiões de matriz africana. “Nós somos importantes na formação desses país e nós só queremos ser felizes. Quem tem fé defende a vida, a liberdade e a democracia. Fé não coaduna com racismo e fascismo”, pondera a Makota, concluindo esse pensamento indo de encontro a uma fala muito presente no discurso do atual governo. “Deus não está acima de nós. Ele está dentro de cada um/a de nós ou ao lado”.
Para as eleições deste ano, Makota Celinha não mede palavras e é taxativa: quem tem fé deveria lutar pela democracia. “As rupturas democráticas que ocorreram tiveram papel ativo de segmentos religiosos conservadores, aliados com o poder político e o capital. O país está vivendo uma onda de ódio, preconceito”. E convoca: “Essas pessoas eleitas precisam assumir compromisso com todos/as, não apenas com pequena parte da sociedade brasileira. Precisamos de municípios que valorizem a diversidade. O Estado precisa ser de todos e de todas”.
Permeada em vários momentos pela beleza e força ancestral das canções interpretadas pela cantora, historiadora e sacerdotisa de Oyá, Rebeca Tárique, a roda foi encerrada com leveza e axé, com compromisso fincado na luta antirracista e contra a intolerância religiosa.