CESE, Articulação Agro é Fogo e ONG ECOA levam apoio emergencial a comunidades afetadas por incêndios criminosos no Pantanal
Voltar ao passado é prazer. Lembrar dos pequenos cultivos de abóbora, melancia, mandioca, arroz, cana e de amendoim. Se o solo dava sinais de desgaste, mudavam-se as plantações para outro pedacinho de terra até que aquele estivesse totalmente recuperado. Ir e vir das baías. Em época de enchente, construir e viver em uma casa numa região mais alta, enquanto a água lavava tudo lá embaixo. Água em abundância.
Essas são memórias de Leonida Aires de Souza, mais conhecida como Eliane. Ela nasceu, cresceu e se mantém até hoje em Barra de São Lourenço, uma comunidade lá do coração do Pantanal, na zona rural de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. “Voltar ao passado é prazer” são palavras dela. “Lembro que na hora do almoço, minha mãe mandava meu irmão ir buscar um peixe lá no rio. Ele ia lá e voltava com o peixe na mesma hora!”.
E essas são apenas algumas das suas lembranças de como era a vida em Barra. Uma história de vida inteira em um mesmo território cria um modo de vida específico, uma relação específica com aquelas terras, as águas, a mata, os animais, os frutos, as verduras, os vizinhos e vizinhas. Memórias que emocionam dona Eliane só de lembrar. Porque, de uns tempos pra cá, tudo começa a mudar.
O fogo e a seca no Pantanal
A água, que antigamente era abundante, deu lugar a uma das maiores secas da história de um pedaço do Brasil conhecido como a maior planície alagada do mundo. Segundo uma nota técnica da plataforma MapBiomas, o Pantanal apresentou em 2023 uma superfície de água anual de 381 mil hectares, o que representa uma redução de 61% em relação à média histórica de 956 mil ha. Em abril de 2024 não houve o esperado pico de cheia.
Nathália Ziolkowski, da ECOA – Ecologia e Ação, explica que o cenário percebido em 2024 já era esperado. “O Rio Paraguai, que é um dos principais da Bacia do Alto Paraguai, apresentou níveis baixos em toda sua extensão, superando a crise de 2020. Tem as mudanças climáticas, atreladas ao desmatamento do entorno da bacia, o assoreamento das nascentes e do Cerrado em si. Os pulsos naturais de inundação do bioma não vieram.”
A nota do MapBiomas explica que a interação entre períodos de cheia e seca do bioma resulta na acumulação de material orgânico, que, durante a seca, se transforma em combustível para incêndios. A grande seca que se apresentou em 2024 contribuiu então para o cenário desesperador que se pôde acompanhar em todo o noticiário nacional por meses.
O ano de 2024 já se tornou o pior da história com relação aos incêndios criminosos, superando 2020. Segundo a plataforma MapBiomas, a área queimada no Pantanal aumentou 249% entre janeiro e agosto, numa comparação com a média dos cinco anos anteriores. Foram 1,22 milhão de hectares, 874 mil a mais. Entre janeiro e agosto, foram cerca de 1,22 milhão de hectares queimados no Pantanal. Corumbá foi foco de mais da metade disso: 741 mil ha.
O relato das comunidades
No meio desse fogo, Barra de São Lourenço. O relato de dona Eliane passa pela dificuldade em atender a uma urgência com a seca dos rios, e até mesmo pelo som do fogo. “O barulho do fogo é horrível. Não são apenas as chamas que são destruidoras, só o ouvir também é. Nossa comunidade ficou cercada, em um momento. É apavorante você estar de pé, olhando aquilo e tentando imaginar o que vai ser quando ele chegar aqui.”
O solo de Barra foi tão castigado que, hoje, o plantio tem sido um dos maiores desafios. Por conta dos incêndios criminosos intensos, formou-se camada tão densa de cinza sobre a terra de sua comunidade que tornou o cultivo impossível.
Trata-se de uma terra que foi castigada tantas e tantas vezes pelo fogo que ainda nem sequer conseguiu se recuperar dos anteriores. “Toda planta que colocamos no chão nem sai direito. Quando começa a sair, se acaba por ali mesmo. Vem o fogo de novo e queima tudo”.
Até mesmo o vento mudou. “O vento do Pantanal nos trazia frescor. Hoje é um vento tão quente que dói. Respirar dói. Temos que ir mais longe para buscar um peixe. Hoje você planta, tem que ir regar. Mas como, se não tem água? Nosso modo de vida mudou completamente. Antes a gente tinha liberdade. Agora temos que lutar na justiça para ter direito de ocupar um espaço que era livre pra gente ir e vir.”
Uma brigada voluntária em um assentamento castigado pelo fogo e seca
Vera Lúcia Batista tem 60 anos e é a líder da brigada do Assentamento São Gabriel, outra comunidade também de Corumbá. Ao todo, são 15 brigadistas por lá. Nove deles/as foram formados pela ECOA, há cerca de 3 anos. São pessoas que fazem um trabalho voluntário para proteger seus territórios e toda a sociobiodiversidade que os compõem.
Fazer um trabalho voluntário não implica apenas em não receber salário. Significa que investimentos e os brigadistas em si não estão entre as prioridades do poder público. As dificuldades para realizar o trabalho de prevenção e de enfrentamento direto aos incêndios criminosos tornam-se ainda mais difíceis. “A brigada não tem trator para fazer os aceiros. Não tem carro para se deslocar com os Equipamentos de Proteção Individual.”
Cerca de 272 famílias vivem no Assentamento e hoje enfrentam as consequências do fogo e da seca. “O fogo e a seca trazem tantos prejuízos. Fica complicado porque não tem muita água. Desse jeito, a gente não planta nada, não colhe nada. Não chove há dois anos. Não se vive sem água. O rio Paraguai, que nunca vi secar, secou. Poços secaram no assentamento.”
O cultivo farto de mandioca, abóbora, feijão, laranja, limão, manga e hortaliças no Assentamento se foi com os dois anos de seca. “Nós somos pequenos produtores rurais, mas não temos nada esse ano para vender. A seca matou tudo. Uma vida que a gente lutou pra ter.”, desabafa a liderança.
Enquanto líder da Brigada, ela conta que nunca viu o que enfrentou em 2024. Um amigo e parceiro de Brigada teve sua vida ceifada na tentativa de combater um dos focos de incêndio. “A gente arrisca nossa vida. Somos voluntários, Porque o nosso território é a nossa vida. O bioma, a fauna, a flora.”
O futuro do Pantanal e de seus povos
Dona Vera partilha uma preocupação que Eliane também manifestou: o que restará dos territórios? “Como será que vai estar até 2030? O bioma? O Pantanal? O Cerrado? As nossas reservas, os territórios, as comunidades. Porque tudo faz parte da nossa vida. Me preocupo com os animais também. Você anda no Pantanal, não se vê mais pé de planta. Não tem um ipê, laranjinha de pacu”.
Eliane afirma que o problema não é o fogo em si, mas quem está por trás dele. “Nós sempre mexemos com fogo. Para fazer nossas roças, queimar as leiras, e não tinha isso que vemos hoje. O que essas pessoas acham que estão fazendo? Elas não sabem estão matando a vida deles mesmos? A natureza? O futuro? Se tudo se queimar, o que resta para as nossas crianças?”
Ela sabe que se não existir território, a vida também se encerra. “Que futuro é esse que estamos deixando? Será que existirá futuro para os vindouros? Pensamos muito no que vai ser do futuro das crianças. O que temos para deixar para eles”
Apoio emergencial
Mediante esses incêndios, a CESE tem dialogado com a Articulação Agro é Fogo colocando à disposição um apoio emergencial para comunidades mais atingidas na Amazônia, Cerrado e Pantanal, contando com o acompanhamento de uma organização local parceira. Neste caso, a ECOA – Ecologia e Ação.
A proposta prevê apoio para compra de alimentos/cestas básicas, água potável, EPIs de combate aos incêndios, mudas e/ou outros itens. Cinco brigadas voluntárias foram beneficiadas no Pantanal. A ajuda foi destinada para compra de alimentos, Equipamentos e bebida Isotônica para ajudar na hidratação dos brigadistas que sofrem muito com o calor.
“O Pantanal é o bioma que todos os anos sofre muito com as queimadas. O município de Corumbá é um dos que mais queimou no país e o fogo chegou em muitas comunidades. O combate foi feito continuamente de agosto a novembro. Muitas comunidades tiveram suas casas, locais sagrados, casa de rezas, sementes, ervas medicinais queimadas. Em muitos lugares, as águas secaram”, explica a Secretária Executiva da Agro é Fogo, Jaqueline Vaz.
“Muitas perderam tudo para o fogo. O trabalho conjunto feito pela CESE, Agro é Fogo e ECOA pôde amenizar o sofrimento e pânico vivido por essas famílias”, finaliza.
As comunidades afetadas também estão buscando apoio junto a outras organizações, a exemplo da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira.