Durante 23 de seus 30 anos de idade, Dalila Calisto, integrante do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens, viveu em Alagamar, uma comunidade centenária do município de Jaguaribara, no Ceará. A cidade em si era cortada pelo Rio Jaguaribe e esse é um fato que moldou a vida da jovem camponesa. O lazer tinha relação com o rio; se faltasse água em casa, era a partir dele que sua família se reabasteceria.
Na primeira metade da década de 1990, Dalila era só uma criança quando teve início a obra que mudaria sua vida e a de milhares de pessoas para sempre: a construção do Açude do Castanhão. O governo federal decidiu construir uma barragem no leito do rio Jaguaribe com o dito propósito de desenvolver economicamente a região. Para isso, a velha Jaguaribe seria inundada e uma nova cidade construída do zero em outra área.
A nova Jaguaribara é ‘vendida’ como a primeira cidade planejada do Ceará. Porém, não fosse à luta, a comunidade natal de Dalila teria sido deixada de lado. Somente após anos de reivindicação por um novo território é que as pessoas da comunidade conseguiram seu pedaço de terra, e apesar de terem levantado o Reassentamento Alagamar, a partir de agora elas estariam mais distantes do rio e com acesso limitado ao recurso.
Dalila conta que logo no período inicial em que as famílias atingidas pelo Açude Castanhão conseguiram ser reassentadas, elas tiveram acesso a água encanada, mas nunca para sua produção agrícola. “Quando o quadro de seca se apresentou no Nordeste, a água foi direcionada para quem produz camarão, para o agronegócio. E assim a água foi sendo privatizada. Até hoje, nós temos água para o básico, apenas consumo humano”, relata.
Estados diferentes, lutas semelhantes
A luta que a comunidade de Alagamar enfrentou ao longo dos anos 90 é a mesma que Fernanda Rodrigues, também do MAB, trava diariamente em Pernambuco ainda hoje. Ela vive na comunidade quilombola de Cupira, do município de Santa Maria da Boa Vista. Essa é uma das comunidades ameaçadas pelo Complexo Hidrelétrico de Pedra Branca e Riacho Seco. As comunidades da região resistem ao empreendimento há 13 anos.
Fernanda não tem dúvidas de que, se as barragens forem construídas, seu povo sofrerá. “Se acontecer, provavelmente seremos remanejados/as para uma área distante do rio e o acesso a essa água será privatizado. No momento, continuamos aqui porque houve luta.”, diz. E não faltam exemplos de que ela está certa. A quilombola cita o caso da hidrelétrica de Itaparica, localizada em Petrolândia, na divisa entre os estados de Pernambuco e Bahia.
Quando ela foi construída, as empresas responsáveis pelo empreendimento acordaram entre si – em 1986 – que todas famílias atingidas deveriam receber terra agricultável para trabalhar, moradia, terra para criatório, assistência técnica, garantia de 2,5 salários mínimos até o início da produção, indenizações justas e participação dos atingidos nas decisões dos reassentamentos. Mas isso não é o que vem acontecendo. Já em 2012, o Movimento dos Atingidos por Barragens chamava atenção para esse descumprimento.
Fernanda conta que, há três anos, os custos do bombeamento de água para as comunidades atingidas foram repassados para a prefeitura e famílias produtoras. A água que antes poderia ser coletada diretamente no lago Itaparica agora teria um custo.
Saneamento para quem pode pagar
O grande capital encontrou mais uma forma de impor seus interesses na disputa pela água. No apagar das luzes de 2021, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional o novo marco legal do saneamento básico (Lei 14026), sancionado pelo governo federal em julho de 2020. A iniciativa privada entrou no cenário em definitivo e poderá decidir quem tem acesso a água, coleta e tratamento de esgoto e quem não tem. Tudo agora é disputado entre empresas estatais e privadas dentro de processos licitatórios.
Dalila afirma que o objetivo disso tudo é transformar a água num ativo financeiro e critica o exemplo de Teresina (PI), onde o serviço de saneamento já foi privatizado. “Antes numa conta de água de 50 reais, 50% desse valor corresponderia à taxa de esgotamento. Após três anos da privatização, essa taxa já é de 100%”. Mesmo assim, a capital piauiense está entre as 20 piores do Ranking do Saneamento de 2021, do Instituto Trata Brasil.
Mas o cenário de crise ainda se aprofunda. A nova Lei também permite o fatiamento das prestações de serviços de saneamento, ou seja: empresas diferentes podem ficar responsáveis pelas diversas etapas do saneamento. Dalila afirma que a iniciativa privada tem interesse justamente nas cidades que já têm uma certa estrutura e a nova lei abre brecha para que elas concorram apenas pela distribuição de água, parte mais barata.
O novo marco prevê a prestação inseparável dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Porém, no segundo caso, a realização de apenas uma das atividades – coleta, transporte, tratamento ou disposição final dos resíduos – já pode ser compreendida como serviço público de esgotamento sanitário. A militante receia que as partes mais importantes sejam relegadas às estatais, agora sem o subsídio cruzado, que permitia reaplicar recursos dos municípios rentáveis para os menos lucrativos.
Cupira, comunidade em que Fernanda vive, sequer possui coleta e tratamento de esgoto. Ela conta que hoje tudo é despejado diretamente no rio ou corre a céu aberto. Com a privatização do serviço, a perspectiva de ver sua terra receber o serviço, que já era pouca, fica ainda menor. E apesar de ser uma comunidade quilombola certificada pela Fundação Palmares, Cupira ainda não é titulada, o que torna todas as lutas ainda mais difíceis.
A CESE ao lado dos movimentos
O Dia Mundial da Água, celebrado hoje (22), é espaço para debater a importância da garantia do acesso a água de qualidade e saneamento básico a toda população. Diante de tantos cenários de injustiças, a CESE reafirma seu compromisso pela defesa e garantia da água como direito humano fundamental e apoia iniciativas do movimento popular em defesa das águas. Água é direito, não mercadoria.