O olhar comum sobre o fogo frequentemente não dá conta de enxergar a sua beleza e o quão essencial ele é para as nossas vidas. Em especial, para a vida dos povos e comunidades tradicionais de territórios do Cerrado, da Amazônia e do Pantanal.
Embora os territórios sejam atacados frequentemente através do uso criminoso deste elemento sagrado, não é do fogo em si que eles são vítimas. O algoz, como sempre, é o agronegócio. São os garimpeiros e madeireiros ilegais, grileiros e os grandes empreendimentos do capital, que querem desmatar seus territórios para transformá-los em mercadorias.
Foi essa a mensagem que marcou a Roda de Saberes “As cicatrizes do fogo e as re-existências nos territórios”, realizada nos dias 20 e 21 de agosto, pela CESE em parceria com a articulação Agro é Fogo. A atividade contou com apoio de HEKS-Eper.
Dividido em dois momentos, o encontro buscou trazer um olhar sobre pontos de ameaça de violações de direitos que conectam as realidades da Amazônia, Pantanal e Cerrado, mas também sobre as resistências, dando ênfase à importância dos povos desses territórios e de como seus modos de vida são fundamentais ao enfrentamento da crise climática, inclusive a partir do uso tradicional do fogo.
O fogo e as re-existências nos territórios
Algumas pessoas convidadas deram depoimentos sobre como o fogo faz parte do modo de vida de seu povo ou comunidade. Desde o cuidado com território que garante a sua subsistência à continuidade das suas próprias vidas.
Maria de Jesus, mais conhecida como Janete, e integrante do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB-PI) pontuou a importância do fogo durante o processo de beneficiamento do fruto que garante a existência e a resistência de suas famílias.
“O fogo pra nós não é a destruição. Não é esse fogo que tá aí destruindo os babaçuais, nossa fonte de renda, a nossa vida. Aqui nós fazemos a queima tradicional. Pra nós, o fogo representa modo de vida, nossos costumes – na quebra do coco, que a gente tira o azeite, torra a amêndoa. Tem fogo na nossa produção inteira”, conta a quebradeira.
A pantaneira e ribeirinha Leonida Aires fala da importância da preservação dos rios, destacando a utilização da queima tradicional para isso.
“Hoje a gente tem muita dificuldade de fazer a queima tradicional, mas precisamos disso. E continuamos fazendo tudo: os aceiros, limpamos boca dos rios perto das nossas comunidades para que eles mantenham seus ciclos, dentro das baías que nos dão a pesca. Mas também para termos um deslocamento mais rápido, manter as plantas que os animais comem. O povo pantaneiro e a natureza – os pássaros, os peixes – são um só”, enfatiza.
Afinação de instrumentos de percussão em tradições quilombolas, iluminar os caminhos e a dança ao redor da fogueira, aquecer os corpos e abrilhantar o canto, preparar o alimento ou alimentar o incensário durante a festa do Preto Velho. Proteger aldeias e comunidades inteiras de uma destruição que pode vir dele mesmo. Essa é a beleza do fogo na vida dos povos e comunidades tradicionais.
Uso criminoso: as cicatrizes do fogo
Mas enquanto elemento potente, o fogo vem sendo utilizado por grileiros, fazendeiros e outros invasores para expulsar comunidades inteiras e explorar seus territórios, transformá-las em grandes pastos para criação de gado, extrair madeira ilegalmente, ou implantar de monocultivos de soja, milho, entre outras commodities.
Desintrusão na TI Karipuna
O povo da Terra Indígena Karipuna, em Rondônia, vive um momento de desintrusão. Desde o início de junho, invasores e pessoas não indígenas – como garimpeiros e madeireiros ilegais – estão sendo removidas do território. Enquanto o Governo Federal noticia que zerou o desmatamento na TI em junho e julho, Adriano Karipuna relata a apreensão do seu povo acerca de retaliações.
“Algumas comunidades já amanheceram com casas e motocicletas incendiadas. Estamos com receio. Os invasores estão colocando fogo no entorno do território. Se esse fogo adentrar a nossa terra, vai ser impossível segurar. Os Karipuna não vão dar conta. O Governo precisa continuar fazendo a vigilância. Nosso medo é que aconteça uma tragédia maior, principalmente nas regiões distantes dos rios”, desabafou Adriano.
Atraso no Manejo Integrado do Fogo na TI Apinajé
No Tocantins, o Governo Federal atrasou a contratação dos brigadistas da Terra Indígena Apinajé. Segundo Antônio Veríssimo, liderança do povo Apinajé, o que normalmente acontece em abril foi concluído apenas no final de junho. Ele afirma que, todo ano, os brigadistas realizam o Manejo Integrado do Fogo (MIF) na TI por volta do mês de maio.
O MIF é um trabalho preventivo para evitar que os incêndios alcancem os territórios. Ele consiste na queima controlada e/ou prescrita de matéria que pode vir a servir de ‘combustível’ para o fogo e gerar incêndios de maiores proporções.
Os Apinajé lidam com as queimadas naturais – que acontecem em períodos mais secos, de ventos fortes e acúmulo de materiais no interior das matas ciliares, um cenário que pode fazer com que focos de incêndio saiam de controle com maior frequência. Mas, nesse contexto, também existem os incêndios criminosos executados pelo agronegócio, com interesse de desmatar, invadir e implantar monocultivos de soja nesses territórios.
“Em muitas áreas não foi feito o Manejo. Há 15 dias, tem um fogo queimando aqui no território. São 22 brigadistas mais a equipe voluntária das mulheres e não conseguem apagar. Tem muita matéria – capim, troncos, galhos, folhas secas”, conta. Ele explica também que esta é a época de frutos específicos do Cerrado. Elas atraem animais, que acabam mortos pelo fogo.
Podcast
A Roda de Saberes “As cicatrizes do fogo e as re-existências nos territórios” nasceu a partir da provocação feita pela série “No Rastro do Fogo: agronegócio e a destruição do Cerrado”, realizada por CESE e Agro é Fogo em parceria com o Guilhotina, o podcast do Le Monde Diplomatique Brasil.
A série analisa as diferentes dimensões da devastação ambiental e dos conflitos por terra que se dão no rastro do uso criminoso do fogo pelo agronegócio, mas também das estratégias de resistências desses povos e comunidades tradicionais, inclusive a partir do manejo do fogo.