Tapiri discute impacto do racismo religioso na vida de povos tradicionais do Mato Grosso

A CESE realizou, entre os dias 16 e 18, o Tapiri Mato Grosso, em Cuiabá. Um encontro que contou com a participação de comunidades tradicionais quilombolas, ribeirinhas, povos indígenas, de terreiro, pescadores/as, representações das juventudes, do movimento LGBTQIAPN+, pantaneiros/as, raizeiros/as, benzedeiros/as e ciganos/as.

O Tapiri é uma iniciativa realizada pela CESE, com apoio da Fundação Ford, e tem por objetivo investigar sobre como os fundamentalismos e racismos religiosos vêm afetando, em especial, a vida dos povos e comunidades tradicionais que vivem nos estados da Amazônia brasileira. A ação já foi realizada no Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará e Rondônia.

Em um estado historicamente marcado pela força do agronegócio, os fundamentalismos políticos e religiosos se unem para formar um movimento ultraconservador e fortemente violador dos direitos de povos e comunidades tradicionais. Os relatos trazidos durante as mesas e debates mostraram o poder e a violência que resultam dessa junção.  

O deles foi o do pescador Lourenço Pereira, indígena do povo Guató e também descendente de comunidades quilombolas do Mato Grosso. Ele conta que sua família costumava viver na beira do rio sem que ninguém se intitulasse dono das terras, apenas com o senso de comunidade. Até que grandes fazendeiros invadiram a região e expulsaram as famílias. Uma das estratégias utilizadas por eles, à época, foi a difamação da religião de seu pai.

“Quando vivíamos na comunidade, nós buscávamos o conhecimento, a cura, os saberes, através do curandeiro, que era meu pai. Aí apareceram os grandes fazendeiros, querendo invadir. Eles diziam para as outras pessoas que meu pai era macumbeiro, feiticeiro. Esse mesmo fazendeiro que nos expulsou teve uma trombose na perna e foi meu pai quem curou ele, com benzedura e ervas”, conta o pescador.

Em sua fala, a Iyanifá Joyce Lombardi, denunciou a “liberdade” com que emissoras de TV propagam a demonização das religiões de matrizes africanas e também tocou em outros pontos. “Os povos de terreiro prestam diversos tipos de serviço para a sociedade, como o acolhimento de mulheres e crianças vítimas de violência. Mas, mesmo assim, não alcançamos o respeito necessário no momento de sermos escutadas”.

Acima de tudo, Mãe Joyce pontuou que a violência contra os povos de terreiro é ainda mais grave contra as mulheres. “Muitas vezes essas mulheres são forçadas a saírem de seus espaços sagrados, mudar de cidade ou estado, deixar de cultuar para garantir a sua sobrevivência mínima. A Lei de Intolerância Religiosa surge por causa da Mãe Gilda de Ogum, e ela já havia falecido no momento de sua sanção, vítima da intolerância.”

O cigano Aluízio de Azevedo aproveitou a oportunidade para falar sobre seu povo e desmistificar questões e estereótipos a que são vinculados. Ele explicou que o nomadismo, embora seja um fato marcante da história dos povos ciganos, sempre teve uma motivação política: se deve ao fato deles serem expulsos de seus territórios e não a um eventual traço cultural.

No âmbito da fé, ele pontua que não há uma religião de origem vinculada aos povos ciganos. “Normalmente, assumimos a religião do local em que estamos. Isso não significa que não temos espiritualidade. E os ciganos, sim, tem muita espiritualidade. Para onde vamos, nós dizemos que somos um povo de muita fé. Ter fé é acreditar no outro, no vizinho, na humanidade”.

Ao longo do debate, outras vertentes da violência propagada pelo fundamentalismo religioso foram expostos e como ele afetam também outros segmentos. Como é o caso das juventudes, assediado tanto por ultraconservadores cristãos quanto pelo tráfico de drogas; das raizeiras, que viram um movimento ser construído nacionalmente perder força devido à pressão midiática; e das mulheres, que vêm os índices de feminicídios se destacarem ano após ano no Mato Grosso.

Mas também dos pescadores e pescadores que sofrem com a ação articulada do agronegócio ultraconservador, extremamente representado em espaços de poder, e que legislam em seu próprio favor, a ponto de criar uma lei que proíbe a pesca de peixes de historicamente vinculados a esses povos e comercializados por eles, mas libera a sua comercialização a partir de grandes criatórios.

No sábado (18), último dia do encontro, o grupo visitou o Inzu Nvanju – Unidos pela Fé Terreiro Vovó Chica da Guiné, também localizado na capital mato-grossense. Recebidos por sua principal liderança Mameto Synavanju, os/as participantes ouviram o desabafo daquele povo, que já chegou a buscar uma nova casa por conta dos incessantes ataques sofridos em seu antigo lar – desde insultos a apedrejamentos.

“Toda minha família passou e passa até hoje essa discriminação, esse racismo religioso. Nós somos perseguidos diariamente. Há quase 2 anos, eu tive que me mudar porque o meu vizinho da frente acabou com a minha festa de Preto Velho. Ameaçou meus Filhos de Santo, tive que parar minha festa, fazer boletim de ocorrência, medida protetiva. Mas eu não aguentei mais”, desabafou a Mãe.