Esperançar: organizações do campo e da cidade discutem estratégias de luta e resistência

“Vai ter um tempo sem tempo. Um jeito sem jeito”. A afirmação sobre as mudanças ao longo dos anos, são de Joana Benedito, matriarca do Quilombo Mesquita, que aos 98 anos, transmite com lucidez e sagacidade as falas que ouvia quando criança.”Eu era criança, não entendia, mas gravei o que me disseram”.

Dona Joana contou suas lembranças e histórias para um grupo  atento de 30 pessoas, representantes de organizações e movimentos sociais e populares de vários estados do país, que participaram entre os dias 8 a 10 de maio do Encontro “O Esperançar dos Povos do Campo, das Florestas, das Águas e das Cidades”, realizado pela Cese, em Brasília (DF).

A visita a dona Joana fez parte da programação do Intercâmbio de visita ao Quilombo Mesquita, que completa 278 anos de luta e resistência no dia 18 de maio, e é localizado no Entorno do Distrito Federal, a apenas 50 km da capital do país.

Com o chamado desenvolvimento, a comunidade rural quilombola do Mesquita viu nascer Brasília. “‘Ainda vai vir uma cidade para mudar aqui pra perto de vocês, eu não vou ver, mas vocês vão ver’. E Brasília, não chegou?!. Elas eram velhinhas e me contavam essas histórias”, conta dona Joana, lembrando os diálogos que tinha com suas tias mais velhas, que faziam previsões sobre o futuro, que não demorou a chegar.

Na atividade de intercâmbio, realizada no dia 9 de maio, as/os participantes conheceram as histórias e as tradições que mantêm vivas a memória do povo do Quilombo Mesquita, como, por exemplo, a Festa do Divino Espírito Santo e a cultura do marmelo, que é transformado em doce, licor, geleia e festa, realizada há 20 anos no mês de janeiro. 

“Eu amei a experiência. Para mim foi uma oportunidade de me reconectar com a minha ancestralidade, eu moro em Brasília e não conhecia o Mesquita. Estou muito emocionada de estar aqui e conhecer um pouco mais sobre essa história de luta e resistência da comunidade”, observou Mayza Gomes da Rede de Mulheres Negras pela Soberania Alimentar e Nutricional do Distrito Federal.

Além disso, a história de resistência do Quilombo Mesquita e a luta pelo reconhecimento do território também foi pauta em uma roda de conversa. Atualmente, a comunidade reivindica a titulação de sua área, reduzida, drasticamente pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que, em 2018, aprovou a redução do território quilombola em mais de 80% da extensão original.

“Com o passar do tempo, nossa história também foi sofrendo algumas violências, porque a partir do momento que chega gente, as pessoas começam a adentrar nosso território, começam a nos violentar, começam a nos tirar vários direitos. Vivemos aqui uma resistência. Vamos completar 278 anos e lutamos para completar muito mais, porque a gente sabe que no nosso país a história dos quilombos, a história das comunidades tradicionais não é fácil. As pessoas falam que a colonização acabou, mas ela ainda é mais viva do que a gente pensa”, destaca o jovem quilombola do Mesquita, Walisson Braga.

“Quando o campo e a cidade se unir…”

O Encontro “O Esperançar dos Povos do Campo, das Florestas, das Águas, e das Cidades” teve entre seus objetivos analisar o contexto das estratégias para a aliança ou unidade entre campo e cidade e compreender as questões de gênero, raça e etnia que atravessam esses espaços. “Provocar essa reflexão é desafiador”, ressaltou Rosana Fernandes, assessora de Projetos e Formação da Cese.

Nos três dias de atividade, as lutas e resistências nos territórios urbanos e rurais, a defesa da soberania alimentar, a produção agroecológica e os impactos das mudanças climáticas estiveram na centralidade das discussões.

“Temos uma potência para estabelecer essa relação entre campo e cidade. Juntos podemos unir forças e lutar, mas acabamos nos dividindo e fragmentando, perdendo essa capacidade de construir algo muito maior na relação, esse é um desafio”, apontou Elizabeth Lopes, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP).

“Os nossos processos de resiliência e resistência é o que nos une. O que nos impulsiona para lutar contra as injustiças e violências une campo e cidade. A nossa força, a nossa resiliência, sobretudo no papel das mulheres nesses campos de lutas. São as mulheres que sempre estão à frente de processos de lutas seja no campo ou na cidade e precisamos visibilizar, apoiar, porque isso nos une quando estamos lutando contra as violências”, destaca Rejane Alves, representante da Articulação Semiárido Brasileiro – Paraíba (ASA-PB).

Para Joice Paixão, da Articulação Recife de Luta, não existe uma grande dicotomia entre campo e cidade, mas sim uma discussão estereotipada e uma disputa ideológica que quer distanciar esses territórios.

“Os recortes de raça, gênero e religiosidade gritam em ambos, nós enfrentamos problemas muito similares, de acesso a políticas públicas, de moradia, de bem viver. São os mesmos debates, causados pela organização social que a gente vive. Na conversa com os outros movimentos, com o Quilombo Mesquita, percebemos que o sistema capitalista usa no campo as mesmas estratégias de dizimação que ele usa nas periferias.”

“Se o campo não planta…”

A produção de alimentos saudáveis, sem veneno, a partir da perspectiva da Agroecologia, também foi apontada como estratégia para estreitar as relações entre campo e cidade.

“Para mim não tem meio termo, não tem mais solução, mas o modo de produção não tem como não ser o agroecológico, é o único modelo que produz e preserva ao mesmo tempo em uma comunhão. Dentro da agroecologia existem diversas técnicas, denominações por territórios, mas tudo está debaixo da agroecologia, que preserva, que recupera, não destrói tudo por completo, não visa apenas o lucro. É um sistema completo”, defendeu Tone Cristiano, do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá.

A crise climática, as secas severas, chuvas intensas, o aumento do desmatamento em biomas essenciais, como o Cerrado, também foram temas apontados durante os diálogos. Tendo como exemplo, uma das maiores tragédias ambientais da atualidade, as enchentes no Rio Grande do Sul promoveram desastres nas cidades gaúchas e também no campo.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, teve parte de seus assentamentos alagados, promovendo a perda das roças que produzem o arroz orgânico, reconhecido mundialmente. Para Renata Menezes do MST, as mudanças climáticas promovem um grande desafio para a produção agroecológica e apontou como os agrotóxicos têm afetado o desenvolvimento, produzindo riscos à saúde e à produção dos alimentos.

A atividade contou com a participação das seguintes organizações: 

Articulação das Mulheres do Cerrado, Quilombo Mesquita, Terreiro Luz de Nzambi, GT de Juventudes do Bico do Papagaio, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), Rede de Mulheres Negras pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Articulação Recife de Luta, Movimento de Mulheres Camponesas (MMC-AL), Rede Xique Xique, Axé Abassá de Ogum, Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), Movimento Organizado de Trabalhadoras e Trabalhadores Urbanos (MOTU), Cooperativa Grande Sertão, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, ASA Paraíba, Associação Xavante Wara, Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá.

“Esses encontros são como uma injeção de ânimo na gente, porque quem vive na luta tem horas que a carga fica pesada e quando nos encontramos com outras pessoas que também passam pelas mesmas situações nos dá força, a gente se soma nas ideias, porque as necessidades básicas são praticamente as mesmas, por isso existe essa identificação com pessoas que nunca nem viu”, ressalta Tone.