INTRODUÇÃO
A CESE é uma entidade ecumênica criada por vontade das igrejas que a conformam, comprometida com a unidade das igrejas e a unidade do povo cristão, com Justiça, Paz e a Integridade da Criação, o diálogo e a colaboração com outras expressões de fé, como as afro-brasileiras e indígenas, entre outras, para afirmar a vida. Sua missão é “fortalecer movimentos e grupos populares, e outras organizações, empenhados nas lutas por transformações políticas, econômicas e sociais que conduzam a estruturas em que prevaleça democracia com justiça na perspectiva dos direitos humanos”.
A CESE reconhece a persistência das desigualdades de gênero no Brasil como um obstáculo para a garantia dos direitos humanos das mulheres, em especial as mulheres de setores populares, o que atinge mais fortemente as negras e indígenas. Assim, compreende a igualdade de gênero como um princípio ético norteador de suas ações, o que a desafia a adotar uma perspectiva de gênero tanto nas suas relações internas como na relação com seus parceiros.
Conforme observado na avaliação externa realizada em 2004, “há um processo histórico de institucionalização de uma abordagem de gênero no Serviço de Projetos e, mais recentemente, nas ações de diálogo e articulação na CESE” (CAMURÇA, 2004, p.43). A avaliadora ressaltou que, no período da avaliação, havia uma satisfatória institucionalidade da questão, o que foi explicitado no documento do planejamento quinquenal 2001–2005, sendo a igualdade de gênero objeto de planejamento, monitoramento e avaliação de efetividade.
Em 2006, foi realizado um processo de reflexão interna sobre a questão de gênero na CESE, com assessoria do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e Instituto Papai, envolvendo todos os setores, resultando em ações, como a revisão dos instrumentos do PMA (Planejamento, Monitoramento e Avaliação) do Programa de Pequenos Projetos e recomendações, como o avanço na incorporação da dimensão de gênero nas políticas referenciais, entre outras.
Em 2016, foi definida a necessidade de elaborar um documento que registre as concepções e práticas da CESE com relação à questão de gênero, em um processo que envolvesse todos e todas que trabalham na organização. A importância de ter uma Política Institucional pela Igualdade de Gênero é reconhecida tanto pela equipe executiva como pela Diretoria Institucional e se compreende que ela está relacionada a outras diretrizes institucionais, como a identidade e missão e as políticas referenciais, em particular a política referencial Direito à Identidade na Diversidade.
A elaboração desta política institucional pela equidade de gênero é fruto deste percurso histórico e, mais recentemente, se insere no processo de elaboração do plano trienal da CESE em curso em 2016, tendo sido realizadas duas oficinas com a equipe, contando com o apoio de Carmen Silva, educadora do SOS Corpo. A primeira oficina foi realizada no dia 29/09/16 com a participação de todos os setores e a segunda oficina aconteceu no dia 20/10/16, com a participação da coordenação e assessorias. A primeira versão do texto foi também discutida e validada pela Diretoria Institucional da CESE, cujas sugestões foram incorporadas ao texto final. Aqui apresentamos a concepção da CESE sobre igualdade de gênero; as orientações para as práticas institucionais; e o caminho para implementação da política.
Ao sistematizar esta política institucional pela equidade de gênero, a equipe compreendeu que um processo de debate semelhante deve ser feito para realizar a necessária institucionalização do enfrentamento ao racismo.
CONCEPÇÃO DE EQUIDADE DE GÊNERO
A CESE defende um enfoque político para abordar a questão de gênero, escapando do “receituário tecnicista e burocrático” adotado por muitas instituições que atuam no campo do desenvolvimento (CAMURÇA, 2004, p.44). Entende que as desigualdades de gênero persistem nas várias esferas da vida social e política e toma a igualdade de gênero como princípio ético, ou seja, como um valor norteador para suas ações e para sua própria constituição. Entende a equidade de gênero não só como igualdade de oportunidades, mas também como acesso justo e igualitário a recursos materiais e ao exercício do poder em todas as esferas da vida, de forma a reverter desigualdades historicamente construídas. Compreende ainda que a equidade de gênero é um elemento constitutivo de sua missão, uma vez que os direitos humanos e a democracia com justiça, centrais na formulação da missão institucional, somente podem ser assegurados se também houver equidade de gênero.
A CESE adota uma concepção feminista das relações sociais de gênero, compreendendo que elas expressam as desigualdades de poder entre homens e mulheres em prejuízo das mulheres e grupos sociais com identidades de gênero e orientações sexuais dissidentes. No campo teológico, busca retroalimentar a riqueza da produção teológica e as lutas populares, tomando como referência, entre outras, a teologia e hermenêutica feminista, tendo como base a afirmação da dignidade das mulheres.
Isso significa valorizar a crítica feminista que reconhece que a desigualdade entre homens e mulheres é causada por estruturas sociais, justificada através de diferenças biológicas e interpretações patriarcais dos textos sagrados como sendo mandatos divinos; praticar a hermenêutica da suspeita como método de desconstrução e reconstrução de leituras teológicas, buscando reconhecer, resgatar e valorizar a tradição das mulheres.
Elementos que constituem a abordagem de gênero da CESE:
- Reconhecimento dos direitos das mulheres à igualdade e à dignidade perante Deus e toda a humanidade.
- Importância de uma teologia feminista, que compreenda a participação das mulheres nas igrejas em todas as suas instâncias.
- Reconhecimento do feminismo na construção da luta das mulheres pela igualdade.
- Compreensão de que há uma forte articulação entre as dimensões de classe, gênero e raça/etnia na configuração das desigualdades no Brasil.
- Empenho para o fortalecimento do movimento popular de mulheres, enquanto sujeito político autônomo.
- Reconhecimento da importância da incorporação das mulheres nos cargos de direção e nas ações de projetos, sem que signifique uma carga adicional de trabalho ou se traduza em exploração de sua força de trabalho gratuita.
ORIENTAÇÕES PARA PRÁTICAS INSTITUCIONAIS
Considerando a abordagem delineada acima, em que as relações sociais de gênero são entendidas como relações de poder desiguais, a CESE construiu orientações para guiar suas práticas nos vários campos da sua vida institucional, buscando contribuir para reverter as desigualdades de gênero:
1 Gestão
A CESE defende que é necessário criar condições para o compartilhamento de poder entre mulheres e homens em organizações mistas quanto ao gênero. A dimensão quantitativa é um dos fatores a serem considerados, visto que a CESE compreende que há uma relação positiva entre o aumento do número de mulheres nos espaços de direção das organizações e o aumento das possibilidades de maior consciência dos problemas das relações de gênero nessas organizações. Internamente, estabelece as seguintes diretrizes para promover a efetiva participação de mulheres nos seus espaços de gestão e decisão:
- Deve-se recomendar às igrejas associadas que incluam mulheres em suas delegações para as assembleias;
- Na composição da Diretoria Institucional, deve ser estimulada a participação de mulheres;
- Deve-se garantir pelo menos 50% de mulheres na composição da equipe da CESE, assim como em cada setor ou instância interna, o que deve ser expresso também nas diretrizes para contratação de pessoal. Tais diretrizes devem considerar ainda a dimensão étnico-racial e a inclusão de pessoas com deficiência;
- Deve-se primar por práticas de apoio à maternidade e paternidade responsável e saudável, considerando as necessidades das gestantes com bebês em fase de amamentação, assim como de mães e pais em outras situações que requeiram condições específicas;
- Práticas de assédio sexual ou quaisquer tipos de violência contra as mulheres não serão toleradas pela CESE;
- A CESE deve pautar a questão de gênero no diálogo com as agências e outros parceiros institucionais, compartilhando informações a partir do contexto brasileiro e das análises dos movimentos de mulheres;
- Nos eventos e outras atividades promovidas pela CESE, deve ser observado o equilíbrio de gênero entre parceiros/as, convidados/as e assessorias. Além disso, a fala pública das mulheres deve ser contemplada.
- Devem ser priorizados grupos da economia solidária/dos setores populares compostos por mulheres para prestação de serviços nas atividades promovidas pela CESE;
- Movimentos de mulheres devem estar representados nos encontros CESE- Movimentos Sociais, realizados a cada dois anos, com o objetivo de colher subsídios para o PMA da CESE;
- Devem ser incluídas ações de formação da equipe sobre gênero, em diversos formatos e enfoques (com toda a equipe ou setores específicos; em suas interfaces com outros temas etc.);
- As políticas referenciais da CESE devem avançar na abordagem da dimensão de gênero;
- Deve ser observada a linguagem inclusiva de gênero em todos os documentos da CESE, sejam eles de circulação interna ou para o público externo.
2 Relações Ecumênicas e Diálogo Inter-religioso
- A CESE deve promover, em caráter permanente, reflexões de inspiração teológica sobre gênero – valorizando as contribuições de teólogas feministas para este campo -, junto a igrejas, com os membros da sua diretoria institucional, com a equipe e parceiros;
- A CESE deve manifestar-se publicamente em relação a questões ecumênicas e inter-religiosas que digam respeito ao enfrentamento das desigualdades de gênero.
3 Comunicação
- As ações e materiais de comunicação da CESE devem expressar a concepção de gênero adotada na CESE, contribuindo para difusão de imagens positivas e não-estereotipadas das mulheres de setores populares, em particular das mulheres negras, indígenas, camponesas e lésbicas, assim como disseminar reflexões teológicas de mulheres sobre os temas em debate;
- As ações e materiais de comunicação da CESE devem buscar valorizar a contribuição social, cultural, econômica e política das mulheres nas várias áreas dos direitos humanos e campos de atuação dos movimentos;
- A CESE deve buscar dar visibilidade às lutas das mulheres nos seus materiais de comunicação;
- Deve ser observada a linguagem inclusiva de gênero em todos os documentos e materiais de comunicação da CESE;
- Os materiais de comunicação da CESE não devem reforçar, e devem procurar desconstruir, estereótipos ou hierarquias ligadas à orientação sexual e identidade de gênero.
4 Apoio a projetos
No apoio a projetos, estratégia central da CESE para fortalecimento dos movimentos e organizações populares, devem ser observados os seguintes aspectos:
- Priorizar o fortalecimento das mulheres enquanto sujeito político, com foco no apoio a organizações de mulheres e/ou iniciativas de lutas sociais protagonizadas por estas, com caráter emancipatório;
- Estimular todos os grupos apoiados nos programas de projetos a avançar na incorporação da dimensão de gênero, com atenção às especificidades de cada grupo ou movimento;
- Monitorar e avaliar, periodicamente, os resultados e efeitos alcançados no reforço à abordagem de gênero nos projetos apoiados, observando as especificidades de cada programa;
- Estabelecer e monitorar metas de aplicação de recursos em projetos voltados especificamente para mulheres em todos os programas de apoio a projetos;
- Considerar a dimensão de gênero em todos os instrumentos de gestão dos programas de projetos, buscando aprimorá-los permanentemente.
5 Diálogo e Articulação
A CESE deve se manter em constante interlocução com os movimentos de mulheres, atentando para sua diversidade interna. Para isso, além de garantir a participação de mulheres nos encontros CESE-Movimentos Sociais, deve:
- Fazer-se presente em momentos estratégicos de organização, mobilização e formulação de propostas políticas dos movimentos de mulheres;
- Acompanhar os debates e intervenções políticas dos movimentos de mulheres e feministas, buscando manter sintonia com suas análises e propostas;
- Estimular avanços nas abordagens de gênero adotadas pelas organizações nos momentos e espaços de diálogo e articulação em que se fizer presente, incluindo a atenção à efetiva participação de mulheres e à sua fala pública;
- Promover espaços de diálogo e articulação sobre gênero e direitos das mulheres, em suas várias dimensões.
6 Formação
As ações de formação desenvolvidas pela CESE devem levar em conta as orientações apresentadas para o conjunto das atividades. A persistência das desigualdades de gênero, assim como as concepções e formas de enfrentamento a esse problema, desenvolvidas pelos movimentos de mulheres e movimentos feministas devem fazer parte dos conteúdos e metodologias adotadas nas atividades de formação. Além disso, a CESE deve:
- Promover formação permanente de suas equipes de trabalho, com relação à dimensão de gênero, promovendo espaços específicos de formação nessa área, mas também atentando para a dimensão de gênero em atividades de formação em outras temáticas de trabalho;
- Incluir gênero como uma dimensão relevante nas ações de formação direcionadas a organizações populares e movimentos sociais;
- Sempre que possível, apoiar a formação individual de membros de sua equipe de trabalho em áreas pertinentes aos direitos humanos, incluindo a questão de gênero;
- A paridade de gênero deve ser observada em todos os espaços de formação promovidos pela CESE;
- Valorizar a contribuição das mulheres e sua fala pública nas atividades de formação promovidas pela CESE.
CAMINHOS PARA IMPLEMENTAÇÃO
As linhas gerais acima devem ser traduzidas nos planejamentos estratégicos e operacionais, incluindo atividades capazes de concretizá-las na vida institucional. Para isso é necessário:
- Esta política deve ser tomada como elemento constitutivo do plano institucional;
- Ações para concretização desta política devem ser incorporadas nos planos operacionais anuais;
- No processo de PMA devem ser incluídos indicadores, com sua consequente avaliação, de forma que sejam capazes de possibilitar a verificação do andamento da implantação desta política;
- Para que toda a equipe executiva da CESE seja envolvida neste processo de institucionalização, serão organizados momentos de discussão da política e de formação sobre as desigualdades entre homens e mulheres.
VEJA O
QUE FALAM
SOBRE NÓS
Eu preciso de recursos para fazer a luta. Somos descendentes de grupos muito criativos, africanos e indígenas. Somos na maioria compostos por mulheres. E a formação em Mobilização de Recursos promovida pela CESE acaba nos dando autonomia, se assim compartilharmos dentro do nosso território.
A CESE foi criada no ano mais violento da Ditadura Militar, quando se institucionalizou a tortura, se intensificaram as prisões arbitrárias, os assassinatos e os desaparecimentos de presos políticos. As igrejas tiveram a coragem de se reunir e criar uma instituição que pudesse ser um testemunho vivo da fé cristã no serviço ao povo brasileiro. Fico muito feliz que a CESE chegue aos 50 anos aperfeiçoando a sua maturidade.
A família CESE também faz parte do movimento indígena. Compartilhamos das mesmas dores e alegrias, mas principalmente de uma mesma missão. É por um causa que estamos aqui. Fico muito feliz de poder compartilhar dessa emoção de conhecer essa equipe. Que venham mais 50 anos, mais pessoas comprometidas com esse espírito de igualdade, amor e fraternidade.
Eu acho extraordinário o trabalho da CESE, porque ela inaugurou outro tipo de ecumenismo. Não é algo que as igrejas discutem entre si, falam sobre suas doutrinas e chegam a uma convergência. A CESE faz um ecumenismo de serviço que é ecumenismo de missão, para servir aos pobres, servir seus direitos.
Comecei a aproximação com a organização pelo interesse em aprender com fundo de pequenos projetos. Sempre tivemos na CESE uma referência importante de uma instituição que estava à frente, na vanguarda, fazendo esse tipo de apoio com os grupos, desde antes de outras iniciativas existirem. E depois tive oportunidade de participar de outras ações para discutir o cenário político e também sobre as prioridades no campo socioambiental. Sempre foi uma troca muito forte.
A CESE completa 50 anos de testemunho de fé ativa no amor, faz jus ao seu nome. Desde o início, se colocou em defesa dos direitos humanos, denunciou atos de violência e de tortura, participou da discussão de grandes temas nacionais, apoiou movimentos sociais de libertação. Parabéns pela atuação profética, em prol da unidade e da cidadania. Que Deus continue a fazer da CESE uma benção para muitos.
Nós, do SOS Corpo, mantemos com a CESE uma parceria de longa data. Temos objetivos muito próximos, queremos fortalecer os movimentos sociais porque acreditamos que eles são sujeitos políticos de transformação. Seguiremos juntas. Um grande salve aos 50 anos. Longa vida à CESE
A gente tem uma associação do meu povo, Karipuna, na Terra Indígena Uaçá. Por muito tempo a nossa organização ficou inadimplente, sem poder atuar com nosso povo. Mas, conseguimos acessar o recurso da CESE para fortalecer organização indígena e estruturar a associação e reorganizá-la. Hoje orgulhosamente e muito emocionada digo que fazemos a Assembleia do Povo Karipuna realizada por nós indígenas, gerindo nosso próprio recurso. Atualmente temos uma diretoria toda indígena, conseguimos captar recursos e acessar outros projetos. E isso tudo só foi possível por causa da parceria com a CESE.
A CESE é a marca do ecumenismo na defesa de direitos. É serviço aos movimentos populares nas lutas por justiça. Parabéns à Diretoria e equipe da CESE pela persistência e compromisso, sempre renovado nesses cinquenta anos, de preservação da memória histórica na defesa da democracia em nosso país.
Celebrar os 50 anos da CESE é reconhecer uma caminhada cristã dedicada a defesa dos direitos humanos em todas as suas dimensões, comprometida com os segmentos mais vulnerabilizados da população brasileira. E valorizar cada conquista alcançada em cada luta travada na busca da justiça, do direito e da paz. Fazer parte dessa caminhada é um privilégio e motivo de grande alegria poder mais uma vez nos regozijar: “Grande coisas fez o Senhor por nós, e por isso estamos alegres!” (Salmo 126.3)