“Depois de muito anos, celebrar esse convênio foi momento de muita alegria pra toda associação”. Embora pareça simples, essa fala tem um significado maior no interior do Vale do Javari, no Amazonas. Ela é de Manoel Chorimpa, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário do Povo Marubo do Alto Rio Curuçá (Asdec). A organização foi fundada em 2003, mas enfrentava muitas dificuldades até recentemente.
A Asdec não conseguia acessar recursos externos – como editais – desde 2007, quando começou a ter dificuldades para continuar declarando o imposto de renda junto à Receita Federal. A situação só muda em 2021, quando o grupo participa da iniciativa de Fortalecimento Institucional de Organizações Indígenas, realizada pela CESE em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
A iniciativa tem por objetivo a regularização de associações de povos originários das bases da Coiab, seja com auxílio na realização de assembleias, atualização de seus estatutos, registro de atas em cartório, pagamento de dívidas junto à Receita Federal, etc. “Foi o momento da gente aproveitar a oportunidade pra resolver todas as pendências”, conta Manoel. Desde então, a Asdec já conseguiu executar cinco projetos – três com apoio da CESE.
A Asdec está situada na cidade de Atalaia do Norte, no interior da Terra Indígena Vale do Javari, a segunda maior do país. Localizada no oeste do Amazonas, no contexto da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, ela possui especificidades tanto do ponto de vista da locomoção quanto da comunicação. O projeto Aldeias Conectadas, executado pela associação em 2022, focava neste segundo ponto.
O projeto viabilizou a compra de equipamentos básicos de conectividade para o escritório da associação e de uma televisão para ser instalada no antigo prédio da Fundação Nacional do Índio (Funai), na aldeia Maronal. O item permitiu acesso a materiais didáticos, através da internet, e mais qualidade para acompanhar as reuniões que envolvem um maior número de associados/as nos encontros.
Atualmente o grupo executa outro projeto apoiado pela CESE com foco no combate ao fundamentalismo religioso. “Hoje nós temos quatro canais de financiadores trabalhando conosco. A gente tem perspectiva que a partir de 2023 teremos vários financiamentos diretos com as associações. Tudo isso a gente tem uma satisfação que não tem como dimensionar. Principalmente pela sensibilidade do olhar atencioso da CESE e da Coiab”.
As falas de Manoel se deram em meio ao encontro “Amazônia de Todas as Lutas: Direitos e Espiritualidades para o Bem Viver”, realizado por CESE, Coiab e Fundo Podáali, entre os dias 8 e 10 de novembro, em Manaus. O encontro contou com apoio do Instituto Clima e Sociedade e da Fundação Ford. Os dois primeiros dias foram destinados à avaliação do que deu certo e do que pode melhorar na iniciativa junto às associações indígenas.
Atuação estratégica e reconhecimento na comunidade
Em curso desde 2019, a iniciativa da CESE em parceria com a Coiab já apoiou 72 associações, que receberam assessoria jurídica, participaram de formações e tiveram projetos apoiados com intuito de viabilizar a sua regularização jurídica. Ao todo, 36 dessas organizações já estão regularizadas e vêm acessando projetos e fazendo articulações para beneficiar suas comunidades.
Após quatro anos de luta, a Associação de Mulheres Indígenas do Povo Arapiun (Arapiun) conseguiu levar o ensino médio para dentro da Aldeia Esperança, no interior de Santarém, no Pará, a partir de uma ação junto ao Ministério Público.
A Associação das Mulheres Indígenas do Rio Negro (Amiarn) foi fundada em 2009 e se regularizou em 2020. Desde então, a associação já conseguiu construir sua sede – que conta com biblioteca para que as mulheres possam contar suas histórias, fazer registro do seu conhecimento, que está majoritariamente no campo da oralidade – e realizou formações sobre a política do movimento indígena e com foco na geração de renda.
A Articulação dos Povos Indígenas do Tocantins (Arpit) foi fundada em 2015, mas finalizou seu processo de regularização em 2022. Hoje ela possui representantes atuando em diversos conselhos estaduais – como o do Meio Ambiente, Educação Indígena, Saúde e Cultura – onde podem pautar discussões como a realização de um concurso público específico para professores indígenas, as mudanças climáticas, entre outros pontos.
O acesso a recursos não é o único triunfo das associações dentro da iniciativa. O reconhecimento e prestígio que as associações vêm acumulando em suas comunidades é outro fator extremamente importante e resultado dessas ações. Maria Divanira de Sousa Medeiros, presidente da Arapiun, conta que a experiência da sua associação está sendo usada como exemplo para ajudar outra associação a se regularizar.
“Nós juntamos forças com outras aldeias. Estamos ajudando a associação de uma aldeia vizinha no seu processo de regularização, a partir do nosso – como nosso processo de trabalho em cartório, da busca por advogado, contador”. Para além disso, ela reforça que, apesar de ser formada por nove mulheres, a Arapiun luta pelo todo. “Na Educação, na Saúde. É a associação quem gere a nossa aldeia”, finaliza.
Elizângela Baré, coordenadora da Amiarn, explica que a sua associação hoje é considerada referência dentro do território. “Desde a nossa formação, a gente já conseguiu levar algumas políticas públicas para as aldeias através de articulação e mobilização – como auxílio maternidade, registro, aposentadoria, confecção de Cadastro de Pessoa Física (CPF). Atingimos todo o território, não só as 55 mulheres da associação”.
“Depois que começamos a regularizar nossa associação, percebemos que, sem ela, a gente não tinha sobrevida, não tinha força. Pra nós, teve uma celebração muito forte com a nossa comunidade e os/as membros estão bastante motivados/as. Temos grupos de jovens formados que querem ocupar espaços de protagonismo dentro da política da associação”, relata Manoel Chorimpa, presidente da Asdec.
Vanicleisson Karajá, secretário executivo da Arpit, aponta que as associações de base da Articulação também estão buscando uma maior organização agora. “O principal é ver que as entidades de base se organizaram também. O povo Apinajé, que é formado por mais de 50 aldeias, buscou criar sua pessoa jurídica. Por mais que a Arpit seja estadual, ela precisa dessas organizações de base. Estamos seguindo o exemplo da Coiab.”
Avaliação: o que deu certo e o que pode melhorar
Os dois primeiros dias do encontro foram reservados à avaliação de cinco pontos específicos da iniciativa de fortalecimento institucional como um todo: as formações, a assessoria jurídica, a elaboração e execução dos projetos e os resultados obtidos. Os grupos compartilharam suas observações sobre o que deu certo e o que pode melhorar em cada aspecto desse. De forma geral, o sentimento é de que este seja um processo continuado, mas que também siga sendo levado para novos grupos.
As dificuldades de conexão em regiões específicas têm um impacto negativo no aproveitamento dos grupos, durante atividades virtuais. Por isso, há uma preferência por encontros presenciais. A participação do advogado Paulo Pankararu em todo o processo de assessoria jurídica foi um destaque positivo, mas foi constatada a necessidade de buscar contadores/as que estejam mais próximos/as às realidades dos povos originários.
Desde 2019, quando teve início esta parceria de CESE e Coiab, 72 associações receberam assessoria jurídica, participaram de formações e tiveram projetos apoiados pela CESE com intuito de viabilizar a sua regularização jurídica. Ao todo, 36 dessas organizações já estão regularizadas.
Vinicius Benites Alves, assessor de Projetos e Formação da CESE, destaca o poder de articulação que algumas associações alcançaram. “Algumas organizações tiveram uma grande atuação de incidência junto Ministério Público, a secretarias de Meio Ambiente. Já outras, além de se regularizarem, também receberam recursos para que outras organizações pudessem se regularizar. Isso foi algo de grande sucesso.”
O vice-coordenador da Coiab, Alcebias Constantino, falou sobre a importância da participação das lideranças presentes no evento. “É essencial a participação das nossas lideranças de base para que possamos continuar o fortalecimento político, institucional e de autonomia das organizações. Estou muito feliz pelos resultados que planejamos e construímos juntos”, afirmou.
A ex-coordenadora executiva da Coiab Nara Baré esteve presente no segundo dia da avaliação e falou sobre a importância de sonhar e aproveitar oportunidades. “Muitas vezes o que a gente precisa é de oportunidade, enquanto mulheres, homens, jovens e lideranças indígenas. Quando pensamos o Fundo Podáali, o pensamos para que essas organizações pudessem acessar seus recursos futuramente. Esse futuro chegou.”